A Siri completou 10 anos na última segunda-feira (4). Na época, a Apple promoveu a assistente virtual como a solução para um desejo antigo de tecnocratas, profissionais e entusiastas, o de poder falar com dispositivos inteligentes e ser compreendido, com o ouvinte sendo capaz de entender o contexto e responder como uma pessoa normal.
Até então, sistemas do tipo só entendiam frases curtas e ordens expressas, mas a Siri seria capaz de entender o que o usuário queria dizer ao falar normalmente, ao invés de ser imperativo. O problema é que o tempo passou, a Siri perdeu tração por uma série de fatores (incluindo a filosofia da Apple), e foi ultrapassada por diversos concorrentes.
A Siri não foi um produto original da Apple, é importante lembrar. O software foi desenvolvido em 2007 pela Siri Inc., uma subsidiária da SRI International, um instituto de tecnologia ligado à Universidade de Stanford. Ele foi desenvolvido usando algoritmos avançados de aprendizado de máquina, focados em entendimento de linguagem natural; seu motor de reconhecimento de voz foi fornecido pela Nuance Communications, empresa recentemente adquirida pela Microsoft.
O objetivo da Siri Inc. era prover uma solução de assistente virtual menos mecanizada, não limitada ao entendimento de apenas frases curtas imperativas, como “ligue para casa”, “toque Queen” e etc. Até então, se você tentasse falar com sistemas similares de uma forma mais fluída, os softwares então disponíveis não entenderiam nada.
Com a Siri, o usuário poderia iniciar uma sentença da mesma forma que se conduz uma conversa, o software entenderia o que ele desejava e forneceria uma resposta adequada. De certa forma, o consumidor estaria finalmente conversando com uma máquina, que entenderia contexto (com muitos poréns, é algo bem mais engessado do que isso).
Em fevereiro de 2010, a Siri foi lançada como um app para iOS; a Apple, ao perceber o potencial da assistente, comprou a Siri Inc. dois meses depois e desligou a aplicação. No keynote do iPhone 4S, em 4 de outubro de 2011, o software foi apresentado como uma solução integrada ao aparelho.
A Siri foi uma muito bem-vinda carta na manga para a Apple naquele momento, visto que Steve Jobs, co-fundador e ex-CEO da companhia, faleceu no dia seguinte. Tim Cook, ainda fresco na cadeira de comando, precisava de algo que desse a seu produto uma diferenciação significativa dos celulares Android de ponta concorrentes, especialmente os da Samsung e (na época) LG, e estabelecesse de vez o iPhone como o gold standard e sinônimo de smartphone premium, com recursos de última geração.
De fato, a chegada da Siri foi significativa, pois graças ao histórico da Apple de ditar tendências, a assistente virtual definiu um novo meio do usuário interagir com seu smartphone, e posteriormente com outros produtos Apple, conforme o software foi se integrando ao iPad, Mac, Apple TV e outros. A concorrência também se coçou, e logo surgiram concorrentes como a Amazon Alexa (a primeira a contar com um corpo próprio, na forma da linha Echo), a Google Assistente, a Microsoft Cortana, o Samsung Bixby e etc.
Dessas, foi a Cortana a primeira apresentada como uma possível rival da Siri, mas ao longo dos anos, ela foi perdendo espaço e foi impiedosamente capada pela Microsoft, por não ter permitido que a assistente virtual se integrasse a produtos externos, algo que Google e Amazon entenderam, e aderiram, de imediato. Hoje, não são raros produtos que tenham dois ou mais softwares do tipo, até na sua sala de estar.
Curiosamente, o estado atual da Siri é muito parecido com o da Cortana, primariamente por uma questão simples: o famigerado Jardim Murado da Apple. A gigante de Cupertino trata sua assistente como uma ferramenta de integração, produtividade, conteúdo e entretenimento, mas também como um produto e um diferencial exclusivo, logo, ela não está disponível fora do ecossistema de dispositivos da maçã.
A Siri fisgou uma grande parte de curiosos com o manjado “fator UAU!”, uma tática do marketing para causar êxtase e extrema satisfação (a Disney o usa em seus parques, faz parte do mantra “não quebre a magia”), visto que no início, a Siri era realmente incrível. Ela era capaz de entender frases complexas, contar piadas e fazer comentários sarcásticos a respeito dos concorrentes, e ao menos no início, não existia nada parecido.
Assim como qualquer coisa relativa a soluções que a Apple considera relevantes (o AirPlay é um agregador, e o FaceTime hoje pode ser usado por gente de fora, em termos),o Siri é visto como uma das joias de sua coroa, um recurso que justifica por si só a decisão de compra, e por isso, não conversa com nada de fora do Jardim Murado, o que limita muito sua experiência. Ele não suporta equipamentos inteligentes de terceiros, mesmo os que não são concorrentes diretos, o que é bem percebido no cenário de uma casa inteligente.
Para fazer a Siri funcionar plenamente, o usuário precisa ter um hub central da Apple, geralmente uma Apple TV ou um Mac, além de HomePods, iPhones, iPads e fones AirDrop, para conversar com a assistente e controlar outros equipamentos. Google Assistente e Alexa, por sua vez, dispensam o hub dedicado e podem usar uma TV compatível, bem como dispositivos Android, PCs, caixas de som inteligentes de diversos fabricantes, etc.
No geral, o ecossistema da Google Assistente e da Amazon Alexa é bem mais flexível que o da Apple Siri.
O outro problema diz respeito à evolução da assistente virtual. A Apple, que foca bastante nas atualizações anuais de seus sistemas, não foi capaz de entender que um recurso conversacional precisa de mais dedicação para se manter inovador. Os concorrentes, até pela maior compatibilidade, seguiram um caminho de interoperabilidade que a Siri não pôde abocanhar, por conta de novo do Jardim Murado.
Com isso, a Siri ficou limitada a receber atualizações significativas apenas uma vez por ano, e sendo bem sincero, as mais relevantes foram as ocasiões em que ela chegou a mais dispositivos Apple. Pouco se investiu em evolução do código e melhoria de suas capacidades de entendimento, ou na sua base de dados no sentido prático. Consultas mesmo simples costumam ser melhor respondidas pela Google Assistente e Alexa (você não, Cortana).
Mesmo dentro de seu próprio cercado, a Siri é extremamente engessada e conversa apenas com soluções Apple. Uma solicitação por direções manda o usuário obrigatoriamente para o Apple Mapas, independente dele usar o Google Mapas ou qualquer outro. Escrever e-mails? Apple Mail. Se o usuário os desinstalou porque não os usa, a Siri irá recomendar reinstalá-los, ao invés do curso mais óbvio, que seria acessar os já presentes no aparelho, ignorando o direito de decisão do consumidor, e como sempre, decidindo o que é melhor para ele em seu lugar.
Muitos dos problemas da Siri se dão devido à filosofia da Apple: a assistente é posicionada como um recurso premium e promovida como atrativo para vender iPhones, e não como uma ferramenta de conexão entre os dispositivos que o usuário já possui.
O uso inteligente da Siri podia ser melhor aproveitado, mas exige um nível de entendimento e imersão extra, na forma dos Atalhos. Com eles é possível customizar uma série de comandos, que são acionados pelo nome da tag, o que volta ao problema inicial dos softwares de reconhecimento de voz: embora disfarçadas, as ações são de novo comandos imperativos e inflexíveis, e não linguagem natural.
Qual a solução? Focar no básico, como solução de problemas relativos ao entendimento de linguagem natural (que afligem todas as assistentes, é bom deixar claro), ao invés de apenas lançar um novo produto e enfiar a Siri nele, seria um bom começo.
Trazer funções realmente disruptivas em termos de conversação, e maior compatibilidade com produtos não-Apple, idealmente os de mercados não concorrentes (TVs seriam um bom começo, visto que muitas hoje possuem AirPlay) também seria interessante.
No mais, os 10 anos da Siri servem mais para demonstrar que ser o primeiro, mesmo com recursos inovadores no seu início, não significa que você continuará sendo o melhor de sua área para sempre.
Fonte: The Verge
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