De acordo com o dicionário Merriam-Webster, gamer é especialmente “uma pessoa que regularmente joga no computador ou em videogames” e apesar desta definição ser conhecida e aceita por boa parte das pessoas, para conhecermos a origem do termo teremos que voltar bastante no tempo, mais precisamente para o século XV.
Especula-se que tal palavra tenha começado a ser utilizada por volta de 1420, quando na cidade inglesa de Walsall aqueles costumava apostar em jogos ilegais como dados e cartas eram tratados como gamer. Já nos Estados Unidos ela só viria a ser adotada por volta do século XVIII, sendo associada a quem que se dedicava a jogos de guerra, uma ferramenta muito utilizada pelos militares para treinar estratégias.
Então, quando em meados da década de 1970 a primeira edição do Dungeons & Dragons foi publicada, a TSR o divulgou como um desses jogos de guerra e o termo que era restrito a um pequeno grupo de homens começou a romper barreiras. Mesmo assim, os jogos de tabuleiros ou RPGs ainda eram aproveitados por poucos e a palavra gamer só ganhou mesmo as ruas no início da década de 80, graças a popularização dos videogames e computadores como o Amiga ou ZX Spectrum.
De lá para cá muita coisa mudou. A indústria se tornou um colosso e se antes as pessoas (especialmente as que não eram mais crianças) tinham vergonha de dizer que gostavam de games, hoje muitos de nós declaramos esta paixão com todo o orgulho. Os jogos eletrônicos estão por toda parte, são consumidos por pessoas de todas as idades e cobertos mesmo pela mídia que antes o ridicularizava.
Com tanto holofote, para muitos ser tratado como gamer deixou de ser uma ofensa, mas na opinião da vice-presidente de marcas da Electronic Arts, Elle McCarthy, chegou a hora de aposentarmos este termo. Responsável por ajudar revigorar a imagem da empresa norte-americana, ao conversar com o site Adweek ela explicou porque tal palavra pode ser considerada ultrapassada:
“Os games não são mais uma mídia ou uma indústria, são apenas ‘interativos’. Agora você pode interagir com quase tudo através dos jogos — de uma área interessante como design de interiores a movimentos como o Black Lives Matter ou explorando sua identidade sexual […]
Muitas vezes sou questionada sobre como as marcas podem fazer parcerias com os jogos ou conversar com os gamers — mas na verdade não existe esta coisa de gamers e entender isso será crucial. Você sabia que apenas 14% dos jogadores se auto identificam como gamers e que entre as mulheres são apenas 6%? […] Não existem regras de melhor prática para conquistar essas comunidades de nicho multifacetadas e apaixonadas. Tentar atingir os gamers é como dizer que você está mirando em pessoas que gostam de música ou pessoas que respiram ar.”
Se pensarmos que hoje temos acesso a jogos bastante complexos num pequeno aparelho eletrônico que carregamos no bolso ou até no logo do Google quando vamos fazer uma pesquisa, realmente fica difícil definir quem se encaixaria neste termo e por isso entendo que a executiva tenha razão. Ao reduzir um número tão grande de consumidores a uma simples palavra, a sensação pode ser de que ainda estamos falando de um nicho e pelo ponto de vista da área de McCarthy, o marketing, isso sem dúvida não é uma boa ideia.
Repare que em outras formas de entretimento não costumamos usar um termo para nos referirmos a quem as consume (não acredito que cinéfilo ou audiófilo sirvam aqui) e essa tentativa de alguns profissionais ligados aos games para não rotular seu público muitas vezes se escora no que é feito em outros setores. Mas falando apenas por mim, nunca vi problema em me referir a alguém que goste de jogos eletrônicos como gamer e até acho bacana existir uma palavra específica para isso.
O “gamer” como termo pejorativo
Ao contrário do que temos nos dicionários, dizer exatamente o que é ser um gamer não é uma tarefa muito simples, com algumas pessoas afirmando que a palavra abrange todos que gostam da mídia e os mais saudosistas defendendo que ela deveria ser restrita apenas a quem é realmente apaixonado e/ou acompanhou toda a história dos games. Novamente voltamos à questão de como a palavra pode ser excludente, mas há aqueles que acreditam que ele deveria mesmo ser abandonada e por um motivo muito mais grave do que o levantado pela representante da EA.
A motivação por trás desta posição mais radical está nas comunidades (especialmente as online) formadas pelos jogadores, já que elas normalmente estão repletas de pessoas com comportamentos tóxicos. Por causa disso, alguns passaram a associar o termo gamer a estes grupos e o que de pior alguém pode defender, indo desde racismo à homofobia, passando pelo machismo, xenofobia e muitos outros tipos de estupidez.
Eu não sei exatamente quando este movimento começou, mas basta darmos uma passada em qualquer rede social para vermos pessoas decretando que “ser um gamer” invariavelmente é estar de acordo com todo tipo de discurso de ódio defendido pela escória que se esconde atrás de monitores (ou de um jogo). Pois para mim, esta é uma “estampa” que sempre esteve ligada a paixão pelos jogos e não a uma espécie de pacto que impedisse alguém de pensar por si só ou a uma vaga garantida em uma sociedade secreta onde o comportamento de manada estivesse acima de seus próprios valores.
Não quero com isso replicar desculpas do tipo “mas nem todo gamer”, mesmo porque sei que basta nos aventurarmos por qualquer jogo online para entendermos rapidamente o quão nocivos estes ambientes costumam ser. O que me incomoda é que eu realmente nunca consegui ver muito sentido neste debate.
Sim, eu acredito que os jogos eletrônicos nunca deveriam ser utilizados para a propagação do ódio, mas ao defenderem tão veementemente que tal palavra deveria passar a ser utilizada apenas para apontar aqueles que, independentemente dos games, continuarão sendo um bando de babacas, penso que algumas pessoas estão usando sua força de forma equivocada.
De qualquer forma, uma interessante explicação para deixarmos este termo no passado foi dada por Ben Croshaw. Na opinião dele, a palavra gamer não passa de um rótulo e sempre que um é utilizado, “uma imagem do estereótipo anexada a este rótulo aparece injustificadamente em sua mente inconsciente.” Assim um leigo poderia facilmente associar esta pessoa a alguma situação ridícula em que os games etiveram envolvidos no passado ou até mesmo a momentos trágicos, como o Massacre de Columbine.
O autor ainda foi além, afirmando que jogar videogames é algo que não deveria ser motivo para às pessoas se orgulharem e não por se tratar de algo errado, mas por isso não lhes garantir uma vaga em um seleto grupo de elite conhecido por um rótulo. Já no caso das jogadoras que se autointitulam “garotas gamers” ele considera ainda pior, pois além delas aceitarem participar da suposta segregação imposta pelo termo, o fato de possuírem dois cromossomos X não lhes garante algo que seja digno de nota.
Para Croshaw, “jogar videogames, por mais divertido, fascinante e benéfico que possa ser, é apenas algo que as pessoas fazem, não, algo pelo qual elas deveriam ser definidas” e deveria caber apenas às agências de propaganda se aproveitarem disso.
Já para o game designer Brandon Sheffield, a palavra foi criada pelos departamentos de marketing para definir aquelas pessoas que vivem enfiadas em um porão fazendo nada além de jogar videogame ou ficar em fóruns da internet xingando tudo e todos, “mas mesmo assim abraçamos esta palavra de braços abertos, exibindo-a orgulhosamente em tags no twitter.”
Outro ponto levantado por ele diz respeito a necessidade que temos sempre que dizer aos outros que jogamos videogame. Se uma pessoa não anda por aí afirmando que assiste filmes, afinal todos tem este costume, também deveria estar implícito que o mesmo acontece com os jogos eletrônicos, não é mesmo?
Pode parecer um pouco de exagero, mas há alguns anos os games se tornaram parte da cultura popular e por mais que eles não sejam tão acessíveis quanto um filme que passa na Sessão da Tarde, lembre-se daquela sua tia que passa a horas combinando joias no celular ou cuidando de uma fazenda virtual por aí. Ela provavelmente não se considera uma gamer, mas sim apenas alguém aproveitando uma forma de entretenimento.
Os argumentos existem de ambos os lados, mas talvez tudo não passe de uma questão de semântica, pois sinceramente não consigo enxergar diferença entre “ser um gamer” ou “ser um jogador de videogame”. Pode ser também que a questão realmente se resuma a opinião defendida por Elle McCarthy, de que os games se tornaram tão grandes que não temos mais como classificar o seu público desta ou daquela maneira.
Talvez o termo que utilizamos por tanto tempo de fato tenha se tornado restritivo demais para algo que já está tão presente na vida de tantas pessoas. Mas o que lamento é que, pelo menos para alguns, uma palavra que considero tão legal e tão representativa tenha virado uma mera forma de xingamento.
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