Levou 37 anos, mas Duna voltou aos cinemas. A versão de Dennis Villeneuve para o livro de Frank Herbert vem sendo obviamente comparada ao filme dirigido por David Lynch, lançado em 1984, mas há quem se lembre que antes deste, houve um projeto infinitamente mais ousado, encabeçado pelo cineasta surrealista Alejandro Jodorowsky (O Topo, A Montanha Sagrada).
A obra, que custou milhões sem nunca ter sequer saído da pré-produção, se converteu em um celeiro acidental de profissionais que lançariam grandes obras de ficção científica nos anos seguintes, e ainda hoje, é referenciada como o filme que não existe mais influente da história.
A história de como a versão de Duna de Jodorowsky veio a ser, e depois não veio, começa em dezembro de 1974, quando um consórcio francês comprou os direitos para a produção de um filme, baseado no livro de Herbert, da produtora APJ de Arthur P. Jacobs (1922-1973), responsável pela franquia original de Planeta dos Macacos. Na época, a produtora estava enrolada com o 3º, 4º e 5º filmes da série, e depois da morte de Jacobs, decidiram abandonar o projeto e repassar os direitos, que tinham sido assegurados em 1971.
Na época Duna era considerado, assim como Fundação (especialistas consideram hoje que Herbert conduziu sua obra como um contraponto à série de Asimov; em Duna, é a linhagem messiânica de Paul Atreides/Muad’Dib que salva a humanidade da decadência, e não uma Fundação calcada na Ciência), um livro virtualmente infilmável, tanto pelo nível de efeitos visuais que exigiria, na época muito caros, quanto pelo texto, que acabaria imensamente condensado para caber em uma película de até duas horas.
Isso não assustou o empresário francês e produtor Michel Seydoux, que estava interessado em produzir um filme de Jodorowsky, e não deu para trás quando o cineasta disse que queria filmar sua versão de Duna. Uma vez que os direitos foram assegurados, os trabalhos começaram. A partir daqui, a coisa foi tomando proporções cada vez maiores.
Seydoux e Jodorowsky buscaram profissionais e artistas que na época não despertavam interesse na indústria do cinema, mas que tiveram liberdade para usar seus talentos e dar forma às ideias malucas do cineasta. O design em especial reuniu três artistas que viriam a ser muito conhecidos depois: o ilustrador Chris Foss, que na época fazia capas de livros de Sci-Fi; o cartunista Jean Giraud, aka Mœbius, que publicava histórias nas revistas francesas Pilote e Métal Hurlant, esta recém-lançada, da qual ele era um dos fundadores; e o designer suíço Hans Ruedi “H. R.” Giger.
Para os efeitos visuais, Seydoux e Jodorowsky recrutaram o então novato Dan O’Bannon, que havia trabalhado com John Carpenter em Dark Star, um filme lançado em 1974.
O time reunido por Jodorowsky daria forma à “experiência espiritual” que ele queria que Duna fosse, algo como a versão em filme do LSD, com os mesmos efeitos (palavras dele). Essa visão o fez se distanciar bastante da história do livro, algo que ele explicou no documentário Jodoroswsky’s Dune com uma analogia um tanto infeliz, que foi inclusive ligada a um suposto incidente ocorrido durante as filmagens de O Topo, o que ele explicou depois.
Para a trilha sonora, Jodorowsky inicialmente entrou em contato com a Virgin Records, para contar com os trabalhos de bandas de rock progressivo como Tangerine Dream e Gong, além de Mike Oldfield, antes de fechar com o Pink Floyd e os franceses do Magma, com ambas responsáveis também pelas músicas incidentais.
A escolha da banda de Roger Waters era um indício de que Jodorowsky estava projetando algo realmente grande para Duna, mas a escolha do elenco superou todas as expectativas, seja no quilate dos envolvidos, quanto em decisões um tanto curiosas:
- Duque Leto Atreides – David Carradine;
- Barão Vladimir Harkonnen – Orson Welles;
- Lady Jessica – Geraldine Chaplin;
- Imperador Shaddam IV – Salvador Dalí;
- Princesa Irulan – Amanda Lear (na época, uma das modelos mais bem pagas do mundo);
- Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam – Gloria Swanson;
- Duncan Idaho – Alain Delon;
- Gurney Halleck – Hervé Villechaize (na época, ele era conhecido pelo papel de Nick Nack em 007 Contra o Homem da Pistola de Ouro; o Tattoo de A Ilha da Fantasia só surgiria em 1977);
- Feyd-Rautha Harkonnen – Mick Jagger (ironicamente, David Lynch escalaria outro cantor, Sting, para o papel);
- Piter De Vries – Udo Kier.
O papel de Paul Atreides ficaria com Brontis, filho de Jodorowsky, na época com apenas 12 anos (YAY nepotismo!); no documentário, o diretor relatou que teve alguns problemas com alguns desses figurões, especialmente Welles e Dalí, para convencê-los a participar do projeto. O primeiro só foi convencido quando ele prometeu reservar seu restaurante favorito, onde o ator e produtor poderia comer de graça sempre que quisesse.
Já Dalí chutou o balde: de modo a aparecer no filme como imperador da galáxia, o excêntrico artista cobrou US$ 100 mil por hora de filmagem. Jodorowsky resolveu esse problema condicionando a quantidade de cenas capturadas ao máximo de uma hora apenas, e outras aparições do personagem no filme seriam resolvidas com marionetes, manequins e outros efeitos.
Segundo H. R. Giger, o diretor posteriormente convidou Dalí a se retirar do projeto, por este ter sido apoiador do ditador espanhol Francisco Franco por toda a sua vida, a quem ele chegou a chamar de “santo”.
De qualquer forma, o projeto acabou mesmo antes de começar. Em 1976, Frank Herbert constatou que o filme havia consumido US$ 2 milhões de um total disponível de US$ 9,5 milhões, apenas com o desenvolvimento de storyboards, designs e script. Àquela altura, o roteiro escrito daria um filme com inacreditáveis 14 horas de duração (o autor chegou a comentar que ele era “do tamanho de uma lista telefônica”), algo absolutamente inviável para um filme que deveria ter apelo comercial.
No fim das contas, Jodorowsky não conseguiu levantar mais capital para tocar o projeto, mas a história não acabou aí. O frisson em torno de sua versão de Duna atraiu a atenção de Hollywood, que começou a oferecer trabalhos para a equipe que o diretor reuniu.
Dan O’Bannon veio a trabalhar nos efeitos de Star Wars, lançado em 1977, e desenvolveu o roteiro de um filme (após passagem por um hospital psiquiátrico, logo após o projeto de Duna afundar) que entraria em cartaz em 1979, para o qual recrutou os talentos de H. R. Giger.
Dirigido por Ridley Scott, Alien: O Oitavo Passageiro recebeu uma série de prêmios, inclusive o Oscar de Efeitos Visuais, dando visibilidade ao design fálico inconfundível de Giger, que se tornou sua marca registrada.
Mesmo Jodorowsky não saiu completamente de mãos vazias da empreitada. Embora o diretor lamente até hoje não ter dado forma à sua versão de Duna (e ele não gostou muito da de Lynch), ele diz que a experiência “mudou sua vida”; algumas ideias não aproveitadas acabaram sendo usadas depois, em parceria com Jean Giraud, na Graphic Novel O Incal, que está sendo adaptada para o cinema pelo diretor Taika Waititi, que também será um dos roteiristas.
A HQ também serviu como a pedra angular do “Jodoverso”, que reúne a saga Metabarões, uma série de Graphic Novels e HQs escritas por Jodorowsky, com ilustrações de Juan Giménez e Das Pastoras; Giraud, por sua vez, conseguiu projetar a revista Métal Hurlant, que ganhou a versão norte-americana Heavy Metal e originou longas animados posteriores, além de ganhar visibilidade para seu trabalho autoral, que lhe rendeu um contrato com a Marvel Comics, entre 1984 e 1989.
É dessa fase que saiu a excelente Graphic Novel Surfista Prateado: Parábola (1988), ilustrada por Giraud (usando o pseudônimo Mœbius) e escrita por Stan Lee, um dos últimos trabalhos do “The Man” para a editora.
Duna por Jodoroswky (e outros): onde assistir
Ainda que o filme de Jodorowsky não tenha se tornado realidade, você pode acompanhar todo o processo por trás da produção, e babar no livro que o diretor produziu para vender o projeto a estúdios, um dos poucos que existem, sendo que um deles está sendo leiloado.
O documentário Jodorowsky’s Dune não foi lançado oficialmente no Brasil, mas se encontra disponível para aluguel e compra nas versões US da Apple TV, Amazon Prime Video, Google Play Filmes e Microsoft Store; a versão de Duna de Dennis Villeneuve está em cartaz nos cinemas e estreará no HBO Max em novembro de 2021, e a de David Lynch pode ser assistida no Prime Video.
Por fim, a minissérie Duna de 2000, exibida pelo Sci-Fi Channel (ela é tão velha que antecede os nomes posteriores do canal, Sci-Fi e Syfy) está atualmente fora de catálogo no Brasil, o mesmo valendo para sua sequência de 2003, Filhos de Duna.
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