A neutralidade da rede chegou aos EUA. Ou não…

A questão da “neutralidade da rede”, muito discutida há um ano, voltou à tona com a decisão tomada semana passada pela FCC (“ Federal Communications Comission ” ou Comissão Federal de Comunicações americana, o equivalente americano da ANATEL) de enquadrar o acesso à Internet em alta taxa de transferência (ou “banda larga”) no Segundo Capítulo (“ Title II ”) da lei americana de telecomunicações, o “ Communications Act of 1934 ”. Veja todas as colunas do B. Piropo Mas o que implica este enquadramento? O que tem ele a ver com a neutralidade da rede? E, afinal, o que vem a ser esta tão discutida neutralidade da rede? Vamos começar por este último item já que poucas vezes na vida tenho visto tanta gente discutir um conceito tão mal compreendido e tanta “otoridade” no assunto dizer e escrever tanta bobagem. Quem sabe eu consiga condensar a explicação de uma forma simples e inteligível, ao alcance dos leigos. Vamos lá: a Internet é uma só, um imenso e absurdamente intrincado novelo de interconexões de um número inacreditavelmente grande de “nós” por onde trafegam dados. Este emaranhado aparentemente desordenado é composto por uma imensa malha formada por diversos ramos interligados (ver Figura 1, obtida na Wikipedia). Quando você faz uma visita, por exemplo, ao sítio do Museu do Louvre para apreciar algumas das obras de arte lá exibidas, o sinal que transporta esses dados, emitido pelo servidor da Internet que os armazena em Paris, tem que atravessar o Oceano Atlântico para chegar até você. Há diversos “caminhos” possíveis para que ele chegue à sua máquina e, dependendo da distribuição do tráfego em cada momento, qualquer destes trajetos pode ser usado (em geral o que está menos carregado de tráfego). Mas há um trecho obrigatório, o último. Este, necessariamente liga sua máquina ao nó da rede que corresponde ao servidor de seu provedor de serviços de Internet. Que lhe fornece um sinal mais ou menos rápido de acordo com a taxa de transmissão contratada. A Internet é um emaranhado composto por uma imensa malha formada por ramos interligados (Reprodução/Wikipedia) Por exemplo: meu provedor Internet usa uma conexão via cabo com minha residência e me oferece conexões em diversas taxas de  transferência a preços diferenciados (quanto mais rápida, mais cara, naturalmente). Como eu uso a Internet praticamente todo o tempo e grande parte deste uso é profissional, contratei uma taxa elevada, de sessenta Mb/s. Acabo de medir, e constatei que o tráfego entre minha máquina e meu provedor se dá, no momento, em uma taxa de 62,68 Mb/s para baixar dados e 3,14 Mb/s para subi-los (para quem não sabe, “baixar”, no jargão da informática, significa transferir dados do provedor para nossa máquina, enquanto subir significa transferir dados no sentido oposto; e não se espante com a diferença nos valores das taxas, que em geral são mantidas mais baixas no sentido provedor/usuário, como no exemplo). Já meus telefones celulares, que dependem de conexões sem fio, não alcançam taxas tão altas. Um deles, cuja taxa contratada é de cinco Mb/s no protocolo 4G (quarta geração), neste momento baixa dados em uma taxa de 5,02 Mb/s o os sobe a 3,17 Mb/s. O segundo, que não suporta o protocolo 4G e usa o chamado “3G+” alcança neste momento as taxas de 3,45 Mb/s e 1,42 Mb/s para baixar e subir dados, respectivamente. Como se vê a rapidez do tráfego pode variar e um dos fatores que determinam esta variação é a taxa contratada com o provedor. Mas aqui há um ponto importante: fechado o contrato, o provedor deve me enviar dados na maior taxa que ele conseguir até o valor que eu contratei, independentemente do tipo, natureza ou origem destes dados (e se isto não fez sentido para você, logo fará, basta ter um pouco de paciência e seguir adiante).  Note que estas taxas alcançadas por meus dispositivos pouco têm a ver com a Internet propriamente dita, mas apenas com o enlace entre mim e meu provedor. É claro que se o fluxo de dados proveniente do Louvre, no exemplo usado lá em cima, encontrar um trecho de rede particularmente congestionado que obrigue a taxa de transferência a cair até, digamos, dois Mb/s, por mais que venha e encontrar trechos “desafogados” daí para frente, não poderá chegar à minha máquina mais rapidamente que os dois Mb/s que passaram por aquele trecho, que funcionou como “gargalo” (é por isso que muitas vezes as medições de taxas de transferência efetivas, da fonte ao destino, oferecem resultados muito menores que os contratados; a culpa, neste caso, não é do provedor, que não pode fornecer dados mais depressa que os recebe, mas do congestionamento da rede). Do que foi dito acima, pode-se inferir que quando o tráfego em um trecho de rede aumenta muito, causa um congestionamento que retarda a taxa de transferência de tudo o que passa por aquele trecho. Agora, vamos adiante. Você conhece o Netflix ? Pergunto explicitamente pelo Netflix porque ele existe no Brasil onde é razoavelmente conhecido. Mas há outros serviços semelhantes, aqui e alhures: empresas que transmitem pela Internet vídeos (filmes de longa metragem, séries desenvolvidas para a televisão e outros) de modo que possam ser assistidos em dispositivos que suportem taxas de transferências suficientemente rápidas para que o vídeo não seja exibido “aos trancos”, mas em tempo real (aquilo que em inglês se convencionou chamar de “ streaming vídeo ”). O dispositivo no qual você assiste ao filme pode ser sua gigantesca televisão inteligente de tela plana e 70” ou seu pequeno celular de tela sensível e 4”. Pois não importa o tamanho da tela: para que um filme seja assistido em tempo real é exigida a mesma taxa mínima – que não é baixa. Bem, quando eu assisto a um filme do Netflix na TV inteligente de minha casa ou em um de meus telefones, meu provedor nada tem com isso. E no sentido mais amplo da expressão: nada tem com o fato de eu haver escolhido assistir um filme, nada tem com a escolha da fonte (como eu disse, há outras empresas além da Netflix) e nada ganha com isso. A ele compete apenas transmitir o sinal na taxa mais elevada possível compatível com o valor comigo contratado, sem qualquer interferência no processo. O problema é que quando um grande número de usuários deste ou daquele provedor resolvem assistir filmes da Netflix ao mesmo tempo, ocorre um aumento significativo do “consumo de banda” (ou seja, aumento do fluxo de dados). Para que você faça uma ideia, segundo artigo de J. K. Trotter, publicado no Gawker, nos EUA, em determinados horários, apenas o fluxo de dados gerado pela Netflix corresponde a mais de um terço do total de tráfego local da Internet. E isto pode causar uma sobrecarga no trecho da rede entre os provedores e seus clientes que, eventualmente, provocará a queda da taxa de transmissão. O provedor tem, portanto, que estar prevenido e equipado para sustentar essa demanda. E tem que fazê-lo a suas expensas, pois, como dito acima, ele nada ganha para permitir que o fluxo de dados proveniente dos filmes atravessem o “seu” trecho da rede e alcance seus usuários. saiba mais Windows 10: afinal, um menu Iniciar que preste… A Justiça existe para garantir direitos, mas suspendeu os do consumidor Windows 10 também nos telefones Teste o Windows 10 sem afetar seu sistema: instale em um disco virtual Mas, tecnicamente, ele pode interferir neste processo. Pode instalar filtros em seus servidores que identifiquem o tipo, origem ou natureza dos dados e, com base nesta identificação, programá-los para agir de uma ou outra forma. Isto foi muito comum no auge das transmissões “ peer-to-peer ” (ligações diretas de um computador a outro através da Internet) usadas por aplicativos como o “BitTorrent” que, quando identificadas, tinham suas taxas de transmissão reduzidas a valores extremamente baixos. Mas é aí que mora o busílis. Naturalmente, os provedores não ficam nem um pouco contentes ao verem seus troncos sobrecarregados sem ganhar um centavo por isso. Principalmente em uma situação sobre a qual eles poderiam exercer algum controle. Por exemplo: poderiam cobrar um valor extra dos clientes que excedam certo limite de “consumo de banda”. Ou poderiam cobrar da fonte dos dados (no caso do exemplo, a Netflix), uma espécie de “pedágio” para permitir que os dados por ela gerados sejam transportados pelo provedor na taxa adequada. Ou poderiam cobrar de determinados serviços (como o Facebook ou Twitter ) uma taxa extra para fazer com que seus tráfegos de dados tenham prioridade sobre os demais (seriam os chamados “serviços especiais”, “premium” ou “priorização paga”). Em suma: poderiam apelar para um vasto cardápio de alvitres para descolar dos usuários ou de empresas mais algum trocado além dos polpudos ganhos que já desfrutam. E isso simplesmente controlando e manipulando as taxas em que tais ou quais dados trafegam em seus trechos da rede. Por outro lado, caso o poder regulatório ache que esses alvitres são prejudiciais aos usuários, os provedores podem simplesmente serem proibidos de usá-los por força de lei, sendo obrigados a tratar igualmente todo tipo de dado independentemente de seu conteúdo, tipo ou origem e nada mais cobrar por isso seja lá de quem for. E a legislação que regula o assunto varia de país para país. Neutralidade da rede A Internet de um país no qual a legislação obriga os provedores a tratar igualmente todo tipo de dados é chamada de “Internet neutra”, ou seja, aquela na qual os provedores tratam os fluxos de dados que transportam com absoluta neutralidade, independente de quem os originou, do tipo de dados e da taxa em que são transmitidos. É justamente este o conceito de “neutralidade da rede”. Um conceito que, para felicidade dos usuários brasileiros, foi adotado pelo Marco Civil da Internet aprovado pelo congresso Brasileiro e sancionado pela Presidente da República em abril do ano passado. Assim como foi adotado mais ou menos na mesma época pelo Parlamento da União Europeia através de um conjunto de leis que regula a Internet lá por aquelas bandas. Uma atitude considerada liberal porque tende a favorecer os usuários e a contrariar os interesses financeiros dos provedores de acesso. Ou seja: na União Europeia e no Brasil vige o sistema de neutralidade da rede. Já nos EUA a coisa tem sido diferente. Até janeiro do ano passado estava tudo meio confuso. O problema era como enquadrar os provedores de Internet. Seriam eles classificados como “serviços de informações” (“ information services ”) ou como “simples transportadores” (“ common carriers ”) de dados? Esta questão, aparentemente desimportante, faz uma enorme diferença. A expressão “ common carrier ”, nos EUA, é reservada para designar certos serviços públicos regulamentados pelo governo que são obrigados a prestar serviços de igual qualidade, indiscriminadamente, a qualquer cidadão (como as empresas distribuidoras de eletricidade e telefonia fixa, por exemplo). Já os “ information services ” não sofrem regulamentação específica e nada os constrange no que toda à qualidade ou tipo de serviço prestado a diferentes clientes. Pois bem, até janeiro do ano passado a agência regulatória americana FCC considerava os provedores de Internet como “ common carriers ” e, nesta qualidade, os obrigava a respeitar os critérios de neutralidade da rede. Mas esta era apenas uma interpretação da agência regulatória, não uma questão fechada ou resultante de uma decisão de seu conselho. Assim sendo, a Verizon, um dos maiores provedores de Internet em alta taxa dos EUA, passou a desafiar a FCC e desobedecer certas regulamentações que impunham a neutralidade da rede. A questão foi levada à justiça e a decisão de um tribunal de Washington, D.C., favorável à Verizon, abriu uma brecha para que a empresa ignorasse certas regras estabelecidas pela FCC relativas ao “ bloqueio e/ou discriminação não razoável ” do tráfego na Internet. Os provedores adoraram. Mas os usuários não gostaram nem um pouco. Por isso se organizaram e apuseram mais de cem mil assinaturas em uma petição ao Presidente da República Barack Obama solicitando sua interferência junto à FCC no sentido de classificar os provedores de Internet como “ common carriers ”. A petição pode ser vista no “We, the people”, o sítio da Casa Branca. Atendendo aos peticionários, Obama enviou uma carta a Tom Wheeler, presidente da FCC, solicitando sua atenção para o problema. Embora Presidente dos EUA, Obama não exerce autoridade sobre as agências reguladoras, que são órgãos autônomos, mas a resposta de Wheeler foi vazada em termos claramente favoráveis. Em resultado disso, Tom Wheeler enviou ao Conselho da FCC um bem embasado projeto de resolução para que a agência usasse sua autonomia e direito de regulamentar os serviços de telecomunicações nos EUA enquadrando os provedores de serviços de Internet no “ Communications Act of 1934 ”, a lei americana de telecomunicações e, mais especificamente, no Capítulo 2 (“ Title II ”), que os equipara aos serviços de telecomunicações. Isto faz com que sejam considerados “simples transportadores” (“ common carriers ”), equiparados aos demais serviços assim classificados, o que os obriga a seguir os critérios de neutralidade da rede. O projeto de resolução foi aprovado por três votos a dois na quinta-feira da semana passada, 26/02, depois de um longo e renhido debate no qual os dois votos vencidos, após longuíssimos discursos contra a resolução, não apenas votaram contra como fizeram o possível para atrapalhar o andamento da sessão. Mas, enfim, deu-se a aprovação. E agora, também nos EUA vigorarão os princípios de neutralidade da rede? Provavelmente, sim. Mas não já. Primeiro porque é preciso, antes, que a resolução do FCC seja publicada, o que tradicionalmente demora algum tempo (da ordem de semanas). Segundo, porque o assunto ainda está muito “quente” e o “ lobby ” dos provedores é extremamente poderoso. E eles não vão se dar por vencidos nem deixar barato. Vão espernear. E muito. Tanto é assim que no mesmo dia em que foi aprovada a resolução, o Comitê Judiciário da Câmara dos Deputados dos EUA enviou uma carta ao presidente da FCC não apenas dando conta do “desapontamento” provocado pelas aprovação das novas regras como informando que pretendem questionar a resolução, chegando ao ponto de criar restrições ao direito da FCC de exercer autoridade sobre a Internet. Quer dizer: por lá, o bicho está pegando. Nós, aqui, que já desfrutamos da neutralidade de nossa Internet, vamos apreciar de camarote a briga de cachorro grande e ver no que vai dar. Torcendo, naturalmente, pela posição da FCC. B. Piropo

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