Lavar as mãos, para a maioria de nós sempre esteve na moda desde os tempos de Pilatos, e é inconcebível, a menos que você use faixa presidencial que medidas simples podem prevenir doenças e controlar epidemias, mas nem sempre foi assim.
Uma das grandes dificuldades das mentes científicas é extrapolar muito além do conhecimento convencional. Entender que tudo que se sabe está errado é muito complicado, doloroso até. Costumamos criticar os religiosos por seus dogmas, mas em verdade a Ciência, por ser igualmente criada e exercida por humanos, sofre do mesmo problema.
E não importa o quão óbvio pareça. Um bom exemplo é a Teoria da Deriva Continental, que especifica como centenas de milhões de anos atrás os continentes estavam aglomerados em um supercontinente, Pangeia, e aos poucos foram se separando. Qualquer criança olhando um mapa mundi percebe que a América do Sul e a África se encaixam bonitinho.
Cientistas foram mais além, e descobriram fósseis em regiões separadas milhares de quilômetros, como as costas do Brasil e da África, indicando que os mesmos animais e plantas uma vez existiram naquelas regiões.
O primeiro a compilar todos esses dados em uma teoria completa foi um meteorologista e geofísico alemão chamado Alfred Wegener (1880-1930). Sua pesquisa incluía evidências geológicas, climáticas, fósseis, modelos matemáticos e tudo que a Ciência do começo do Século XX tinha a oferecer. Como resultado ele foi recebido com…
Escárnio, ridicularizado, os geólogos o acusaram de se meter em uma área que não era a sua. Hipóteses foram formuladas para apontar os erros na tese de Wegener, a ponto de certa vez ele assistir a uma conferência aonde sua teoria foi tratada como piada. Wegener morreu sem ver suas idéias levadas a sério.
A deriva continental era simplesmente algo novo demais, e a tecnologia não existia para comprovar sua viabilidade. Com o passar do tempo Wegener foi redescoberto, novas gerações com novos conhecimentos expandiram e refinaram as idéias dele, e hoje graças ao GPS conseguimos acompanhar a deriva continental em tempo real. Wegener se tornou santo-padroeiro da geologia e da geofísica. Grande consolo.
O que isso tem a ver com o ato de lavar as mãos? Tudo, e nossa história começa com este cidadão aqui, o Dr Ignaz Semmelweis.
Nascido em 1818 na Hungria, em 1846 ele assumiu o cargo de residente-chefe no Hospital Geral de Viena. Semmelweis era médico mas antes de tudo um cientista, e como todo cientista de verdade, adorava dados. Ele começou imediatamente a compilar tudo que acontecia no hospital, e um fato chamou sua atenção:
O hospital tinha duas alas de maternidade: Uma operada por médicos, a outra por parteiras. A imensa maioria das mulheres preferia a ala das parteiras, mas não por motivos lacradores. As parturientes admitidas na ala comandada por médicos tinham uma taxa de morte for febre puerperal até cinco vezes maior.
A febre puerperal é uma condição hoje bem rara, mas costumava ser um problema assustador. Uma infecção generalizada, às vezes atacando mãe e filho. Sim, faz sentido visto que parto está longe de ser um processo lindo limpo e fofinho, é sangue, placenta, secreções, incontinências (sim, S, #1 e #2) e muito mais que você não vê nos filmes.
Semmelweis tentou identificar fatores que diferenciassem os dois ambientes. Primeiro ele notou que as parturientes com as parteiras davam à luz de lado, com os médicos, de costas. Ele mandou que os médicos começassem a colocar as pacientes de lado. Não houve mudança.
Ele chegou a achar que a causa fosse um padre que passava com um sino e um sacristão pela ala médica, quando alguma paciente morria. Ele pediu pro médico não usar o sino, pois poderia estar assustando as outras pacientes e induzindo novos casos de febre. Também não surgiu efeito.
Um dia ele soube da morte de um patologista no hospital. Não era exatamente raro, médicos morriam bastante. No caso ele estudou os sintomas, eram idênticos às mulheres que morriam de febre puerperal, era a mesma doença.
Patologistas estudam cadáveres. Semmelweis teorizou que “partículas cadavéricas” estavam contaminando os médicos, que as transferiam para as futuras mamães-cadáver. Como se livrar de partículas, cadavéricas ou não? O método mais simples é… lavar as mãos.
Semmelweis ordenou aos médicos que ao invés de sair dos laboratórios anatômicos cobertos de sangue e tripas de cadáveres, indo direto fazer partos, eles trocassem de roupa e… lavassem as mãos.
Os resultados foram imediatos, as infecções e mortes caíram vertiginosamente, de 18% para 2.2% ao ano. The end, Semmelweis salvou o mundo, certo? Errado.
A Teoria dos Germes não existia ainda, a idéia mais prevalente era a teoria do Miasma, uma espécie de vento ou corrente de ar que por si só causava doenças. Os estudos sobre microorganismos ainda eram muito preliminares. John Snow (não aquele, esse sabia das coisas) publicou seu primeiro estudo preliminar sobre a Cólera em 1845, mas a versão definitiva só saiu em 1855. A comunidade científica só foi realmente levar a sério a idéia de micro-organismos com Louis Pasteur, que publicou em 1880 On the Extension of the Germ Theory to the Etiology of Certain Common Diseases, um paper aonde inclusive explica o processo de infeção da febre puerperal.
Mesmo com os resultados falando por si só, Semmelweis não era bem visto pelos colegas. Muitos médicos se sentiram ofendidos com a idéia de que estavam “sujos”, passaram a se recusar a lavar as mãos, e como Semmelweis não tinha uma explicação realmente convincente, a lógica João Grilo “Não sei só sei que é assim” não foi suficiente para manter o procedimento.
Lavar as mãos deixou de ser regra, logo os médicos voltaram a ir direto do Anatômico pras salas de parto, Ignaz Semmelweis foi hostilizado e expulso do hospital. Vários cientistas criticavam seu livro, aonde listava suas descobertas. Ele respondia com cartas irritadas, arrumava brigas e era tudo menos diplomático.
Com o tempo ele passou a beber mais e mais, para desespero da esposa era frequentemente visto nas ruas bêbado acompanhado de damas que trocam favores por dinheiro. Depois de um surto, em 1865 ele foi encaminhado para uma instituição psiquiátrica. Isso mesmo, um hospício, manicômio. Preso a uma camisa de força, Semmelweis tentou fugir, quando foi espancado por vários guardas. Sua mão, destruída pelos porretes, gangrenou em 14 dias depois de sua admissão, Ignaz Semmelweis morria de infecção generalizada, provavelmente o mesmo microorganismo que ele tentou e conseguiu eliminar, mesmo que por pouco tempo.
Ignaz Semmelweis morreu sozinho, em agonia, ridicularizado e ignorado por sua comunidade, que achava idiota a idéia de lavar as mãos para prevenir doenças. De nada adianta ele ter sido reabilitado depois, ganhar selos postais e uma linda estátua em Budapeste.
Não há como recuperar as vidas perdidas por causa dos médicos arrogantes que se recusavam a aceitar evidência científica real, por não se encaixar em seus dogmas. Por outro lado eu seu breve período no Hospital Geral de Viena sua insistência no ato de lavar as mãos salvou incontáveis vidas. Gerações e gerações de pessoas existem hoje por causa desse médico que ousou colocar a vida de seus pacientes acima da arrogância de seus colegas.
Hoje temos muito mais conhecimento, sabemos os exatos mecanismos das infecções, entendemos como controlá-las e quais seus pontos fracos, e o mais forte dos microorganismos, o mais poderoso dos vírus não resiste a um simples gesto promovido por um (merecidamente) arrogante médico húngaro que deu a vida por suas idéias: Lavas as mãos.
Portanto, esqueça simpatias, remédios mirabolantes e tudo que você viu no zapzap. Elimine o Coronavirus da sua vida e ao mesmo tempo homenageie Ignaz Semmelweis: lave as mãos.
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