Star Trek, ou Jornada nas Estrelas, para os mais velhos é uma franquia que venceu o desafio do tempo. Criada por um humano imperfeito, Star Trek começou como uma série genérica de ficção científica, para se tornar parte da cultura mundial, influenciando milhões de cientistas, engenheiros, empreendedores mundo afora, vendendo um futuro repleto de algo que sempre foi raro no mundo real: Otimismo.
Desde seus primórdios a ficção científica sempre teve um grande componente de escapismo. Flash Gordon vivia em um mundo totalmente alienígena, e mesmo Ming, o Impiedoso, que era uma boa representação do “perigo amarelo”, seguia a imagem de vilão da época. Não havia nenhuma campanha subliminar contra orientais, se ao invés de 1934 Flash Gordon fosse lançado em 1944 o imperador seria Hans o Huno ou algo assim.
As pessoas, principalmente em épocas de crise gostam de histórias que as tirem de suas vidas, que as façam esquecer o dia-a-dia, e a ficção científica era ótima pra isso, com um problema: As histórias eram bem superficiais, são raros os filmes que se tornaram clássicos, séries de TV, mais ainda. Perdidos no Espaço era escapismo puro, praticamente nenhum episódio é memorável.
Em 1966 surgiu uma série diferente disso tudo. Criada por Gene Roddenberry, um ex-piloto que voou na 2ª Guerra Mundial, foi membro da Polícia de Los Angeles e conquistou uma carreira de roteirista e produtor, Star Trek apresentava um futuro repleto de perigos, mistérios e… otimismo.
Pela primeira vez humanos excepcionais não eram a exceção. Star Trek era uma utopia com a rara característica de não ser chata ou tediosa. Por ser tão diferente, Jornada não era entendida por muita gente, incluindo os executivos de TV, que reclamaram de Spock apontando sua aparência “demoníaca”, reclamaram da 1ª Oficial ser uma mulher, e reclamaram do episódio-piloto ser… cerebral demais.
Por sorte Star Trek tinha uma madrinha bem poderosa: o Estúdio DESILU, de Lucille Ball e Desi Arnaz, que eram o Casal 20 da TV na época, eles misturavam carisma com administração de talentos, e sabiam onde investir. E acreditaram na proposta de Gene Roddenberry.
A NBC rejeitou o primeiro piloto, The Cage, mas depois de alguma negociação em uma decisão inédita, topou bancar um segundo piloto, Where No Man Has Gone Before. O segundo piloto trocou o capitão – SUDERJ INFORMA: Sai Christopher Pike, (Jeffrey Hunter) e entra James R. Kirk (William Shatner).
A ordem era detonar Spock e a Número 1, Roddenberry brigou por Spock e aceitou abrir mão da personagem de Majel Barret, o que deve ter criado um bruta climão, visto que os dois eram amantes, na época. Para não melar tudo de vez ele criou para ela o personagem da Enfermeira Chapel.
Aos poucos Roddenberry foi se cercando de uma equipe de roteiristas e produtores de primeira linha. Uma delas era Dorothy Fontana, uma secretária que trabalhou com ele na série The Lieutenant, que tinha aspirações de virar roteirista. Não exatamente uma carreira cheia de mulheres, na época, tanto que ela assinava D.C. Fontana.
Como Roddenberry não ligava pra essas bobagens sexistas do Século XX, incentivou a moça, ela logo virou supervisora de roteiro, e acabou escrevendo grandes episódios para Star Trek.
E crianças, como haviam grandes episódios. Star Trek, como toda boa ficção científica cobria temas controversos usando a desculpa de “não é na Terra, é em outro planeta, então tudo bem”. E os censores engoliam.
Ao contrário dos tempos modernos, com uma geração criada com leite de soja e TikTok, nos Anos 60 as pessoas eram capazes de entender metáforas e alegorias. Em Let That Be Your Last Battlefield, a Enterprise é abordada por dois aliens, representantes de facções inimigas. Eles se vestem de forma idêntica, a única diferença é que em um o rosto é dividido entre preto do lado esquerdo e branco do lado direito, e o outro é invertido.
Aqui o Jovem moderno fecha a Netflix e escreve um post de 20 páginas no Tumblr denunciando o uso de Blackface.
Durante o episódio todo tipo de injúria racial e discurso inferiorizante é usado, pelos dois, um contra o outro. A tripulação da Enterprise fica pasma. Como eles podem se odiar, se achar tão diferentes, se eles são basicamente iguais?
Metáforas, crianças. Esse episódio se tornou uma das maiores denúncias contra o racismo em Star Trek até Far Beyond the Stars, em Deep Space Nine.
Em A Taste of Armageddon a Enterprise visita um planeta que está envolvido em uma guerra de mais de 500 anos, mas as cidades estão intactas. Eles descobrem que a guerra é simulada em computadores, e quando um dos lados sofre um ataque, as baixas são calculadas e as pessoas se encaminham para câmaras de extermínio. Assim os planetas não sofrem danos físicos, e podem prosperar. Eles basicamente descreveram o complexo industrial-militar financiando guerras em países distantes.
Claro, Star Trek era uma cria de seu tempo, teve altos e baixos, como Spock Chapado Caçador de 9vinhas, e Kirk dizendo que mulheres não podem comandar naves estelares, mas na soma geral Star Trek teve uma influência imensamente positiva.
William Shatner lembra quando foram convidados para uma visita à NASA, ele estava morrendo de medo de ser ridicularizado, afinal eles eram atores fingindo ser astronautas, iriam encontrar cientistas espaciais de verdade.
No final os engenheiros eram super-tietes, e até deram de presente a Shatner um modelo da Enterprise construído por eles.
DeForrest Kelley perdeu a conta de quanta gente escreveu para ele contando que estava estudando ou havia se formado em medicina por causa do Dr McCoy. Em um caso em especial ele lembra de uma vez quando foi a um hospital pra um exame de rotina, e viu um jovem numa maca, nervoso pois iria fazer uma cirurgia.
O jovem o reconheceu, mas não falou nada, ficou olhando, nervoso. Kelley andou até ele e disse “não se preocupe, vai dar tudo certo, mas avise a eles que se tiverem algum problema, é só me chamar”. O jovem foi pra cirurgia com um sorriso no rosto.
Nichelle Nichols por sua vez foi fundamental para inspirar milhares de jovens negras, inclusive Whoopie Goldberg, que quando viu Star Trek pela primeira vez gritou pela mãe: “Mãe, olha só, tem uma mulher negra nesse programa e ela não é a empregada!”
Apesar disso, Nichelle achava que não estava fazendo o suficiente, e resolver sair da série, mas antes que pudesse comunicar sua decisão, recebeu um telefonema de um fã, agradecendo por ela dar o exemplo, mostrar que mulheres negras podem explorar o espaço, ter um lugar na Ponte da Nau Capitânia da Frota Estelar. O nome do fã? O Reverendo Martin Luther King, jr.
Entre as muitas meninas que Nichelle inspirou, está a Dra Mae Jemison, médica, astronauta e primeira mulher negra a ir ao espaço, em 1992. Para completar o círculo de forma primorosa, em 1993 a Dra Jemison fez o papel da Tenente Palmer, no episódio Second Chances, de Jornada nas Estrelas – A Nova Geração.
A Nova Geração (1987-1994) veio trazer sangue novo, uma visão mais madura do sonho de Roddenberry, e Jean Luc Picard para muita gente é um líder muito melhor que o Capitão Kirk. Picard é maduro, ponderado, um diplomata. Kirk é impetuoso e resolve tudo com uma voadora.
A série continuou abordando temas polêmicos, discutindo através de alegorias questões como drogas, transexualidade, direitos humanos, escravidão e tortura. E sexo com fantasmas, mas a grande polêmica entre os fãs foi a inclusão de um klingon na ponte de comando.
Nos melhores Ideais de Star Trek, os antigos inimigos agora eram aliados, mais uma cultura para acrescentar à Federação. Claro, como nerds não gostam de mudanças muita gente protestou, mas Worf logo se tornou um dos personagens preferidos.
Gene Roddenberry trabalhou pouco na Nova Geração, o que permitiu que a série fugisse um pouco da Utopia, com humanos ainda sendo humanos, tomando decisões erradas e egoístas, mas mesmo assim o otimismo imperava. A coisa só desandou em Deep Space Nine (1993-1999), quando a Utopia encarou a Realidade, e todos os ideais da Federação não foram suficientes diante das novas ameaças.
Deep Space Nine foi a menos episódica das séries de Star Trek, com o arco da Guerra do Dominion dominando as últimas temporadas. Em DS9 surgiu a Seção 31, uma organização secreta implacável dentro da Frota Estelar, manipulando a geopolítica da Galáxia, a qualquer custo.
Também conhecemos novas espécies, e a Ciência da Federação teve que aceitar e negociar com a espiritualidade de outras espécies, um belo exemplo de que é possível que ambos os lados de uma discussão estejam certos.
A série também teve sua dose de discussões polêmicas, abordando fundamentalismo, terrorismo, racismo, com o já citado Far Beyond the Stars, e mostrou o primeiro relacionamento homossexual em Star Trek, entre a Tenente Dax e a Major Kira, no Universo do Espelho. Em outro episódio, Rejoined, Jadzia Dax reencontra a viúva de um de seus antigos hospedeiros, Torias.
A chama se reacende, e apesar de Torias ter sido homem, não importa para nenhuma das duas que o simbionte Dax hoje habite um corpo feminino.
O foco do episódio é o tabu que um Trill nunca deve reatar relacionamentos do hospedeiro antigo. O fato de ser um relacionamento entre duas pessoas do mesmo sexo é irrelevante e ignorado no episódio, do jeito que Star Trek adora fazer.
Conta pontos também Deep Space Nine ser a primeira série de Star Trek protagonizada por um ator negro, e poucos botaram tanto peso no papel quanto Avery Brooks.
Sisko não é santo, ele comete um crime de alta traição para forçar o Império Romulano a se aliar à Federação na Guerra com o Dominion, mais de uma vez ele se alia a criminosos de guerra Cardassianos, e mantém um agente-duplo disfarçado de alfaiate.
Deep Space Nine é a série mais cinza de Star Trek, e talvez por isso, a melhor.
Depois dela, vieram Voyager, Enterprise, e depois de um longo hiato, Discovery, Picard, Lower Decks. Em breve teremos Strange New Worlds, mais uma vez dando a volta completa e contando as aventuras do Capitão Christopher Pike e da Enterprise, antes do tempo do Capitão Kirk.
Também está em desenvolvimento uma série da Seção 31, protagonizada pela Imperadora Philippa Georgiou (Michelle Yeoh), a melhor coisa de Star Trek Discovery. O Universo do Espelho é um conceito maravilhoso e merece ser muito mais explorado.
Star Trek Prodigy também está pra ser lançado em breve, um desenho animado voltado pro público mais jovem. Outras séries também estariam em fase inicial de desenvolvimento. O importante é que que estamos vivendo a Era de Ouro de Star Trek.
O Trekker moderno pode se dar ao luxo de não gostar de uma série, e até mesmo de não assistir. Pode até apontar o dedo gritando “isso não é Star Trek”.
Por muitos anos nós fãs vivemos de reprises. No Brasil a Nova Geração começou a passar na finada TV Manchete, no modelo compram uma temporada, reprisam até a fita desgastar, e então compram outra. Eu tinha um muambeiro que recebia fitas gravadas da TV nos EUA, copiava em fitas VHS, e revendia. Parecia uma compra clandestina de drogas.
Jornada nas Estrelas me afetou fundamentalmente, mostrando não o que eu era, mas o que eu poderia ser. Era uma visão de futuro que envolvia tecnologia, o mundo, mas também indivíduos. Você podia ter ideais nobres, viver em um mundo sem preconceito, ganância ou violência, mas não precisava ser um banana, como os hippies que pregavam esse discurso. Spock ou Data jamais levantariam a mão contra um inocente, mas enfrentariam um exército para defender essa mesma pessoa.
Não que fosse fácil ser fã de Star Trek nos Anos 90. Sem internet, a gente dependia de boca a boca e notícias de jornal. De vez em quando surgia algum evento no Além da Imaginação, uma loja nerd em Niterói. Às vezes o JETCOM (Jornada nas Estrelas – Terminal de Comunicação) um fanzine aqui do Rio caía na mão e a gente devorava, rindo das caricaturas que o Guilherme Briggs desenhava.
Quando a Internet começou a se estabelecer, surgiram as listas de email, eu descobri na lista da Frota Estelar, de São Paulo, um querido grupo de amigos, como nenhum outro. (Edson, Joelson, Carol, Bia, vida longa e próspera!)
O grande diferencial é que ao contrário dos K-Poppers e Kaomers de hoje em dia, na Frota a gente se reunia em torno de algo que a gente gostava, não para perseguir quem não gostasse de Star Trek. E Star Wars? A maioria era fã também. O Espaço é bem grande, cabe todo mundo.
Star Trek me proporcionou incríveis momentos, de participar de um casamento trekker na ponte da Enterprise D em Las Vegas, a encontrar e apertar a mão de Leonard Nimoy, depois de ser abençoado por ele com uma prece em hebraico, quando de sua vinda ao Brasil para a Convenção da Frota.
Jornada nas Estrelas é diversão, é inspiração e é um ideal. Espero que Futurama esteja errado e nunca seja corrompida em uma religião, mas filosofias bem piores já sofreram o mesmo destino.
Star Trek me ensinou que as necessidades da maioria se sobrepõem às necessidades da minoria, ou de um só. Também me ensinou que isso é mentira, e que às vezes amigos se unem para ajudar alguém, não importa o custo.
A maioria dos trekkers concorda com o GET A LIFE! Do clássico esquete do Saturday Night Live com William Shatner, mas discorda que “é só um programa de TV”. Star Trek é muito mais que isso. É uma filosofia de vida que 55 anos atrás já pregava e praticava todos os ideais que estão na moda hoje, sem o discurso rancoroso e vingativo. Star Trek era uma série que fazia pensar, sem apontar o dedo na cara do espectador e dizer “envergonhe-se disso”.
A mensagem sempre foi otimismo, e talvez por isso muitos não tenham gostado de Star Trek: Picard, mas nenhuma utopia dura para sempre. A maior marca do otimismo é justamente ter a coragem de reconstruir sua Utopia. E isso é Picard. Ele continua acreditando em seus ideais, sempre.
De resto, só a alegria da ganhadora do Oscar Whoopi Goldberg ao ser convidada para participar de Picard, já valeu a série:
Jornada nas Estrelas começou como uma série de TV, de sucesso mediano. Com boatos de cancelamento no final da segunda temporada, foi ressuscitada graças a uma campanha nacional orquestrada por uma fã chamada Bjo Trimble, que organizou trekkers através de newsletters, inundando a NBC de pedidos para a volta de Star Trek.
Foram mais de 116 mil cartas, enviadas por cientistas, engenheiros, médicos, museólogos e até o Governador do Estado de New York. A série foi renovada para a 3ª temporada, mas foi mudada para Sextas-Feiras, 10 da noite, um horário totalmente morto. Com cortes de orçamento, e boa parte da produção se afastando, Star Trek foi cancelada, com 79 episódios.
Daí em diante, foi vendida para emissoras regionais, passada em regime de reprise e caiu no gosto do público. A série que acabou em 1969 voltou em 1973 em uma versão em animação, que é desprezada pela maioria dos trekkers mas foi a primeira série de Star Trek a ganhar um Emmy.
Nos 13 anos entre a Série Animada e a Nova Geração tivemos dois filmes, hoje Star Trek acumula 13 filmes no cinema. Alguns muito bons, mas o lugar de Star Trek é na TV, somente na telinha (ou teliiiiinha se você assistir no celular) há espaço para as discussões filosóficas, a camaradagem, as intrigas e aventuras de uma franquia que se aprimora a cada episódio, respeitando o passado e errando ou acertando, construindo o futuro.
Convenhamos, duvido que o maior hater de Discovery tenha deixado de se emocionar com a chegada da Enterprise no final da 1ª Temporada:
Existem filmes e séries feitos pra gente se sentir melhor, histórias que mostram que somos especiais, às vezes incompreendidos, que temos um dom oculto prestes a ser descoberto. Por isso histórias de princesas e cavaleiros funcionam tão bem. Oras, quem não quer ser o Neo, Luke Skywalker, Elsa ou Moana? Quem não quer puxar a espada da pedra, erguer Mjolnir?
A diferença é que Star Trek faz a gente se sentir bem sem que sejamos especiais. Por 55 anos a franquia tem promovido um futuro melhor, mas um futuro que não vem de grandes líderes ou grandes guerreiros (guerra não faz ninguém grande, já dizia um sábio alien de orelhas pontudas. Não, aquele outro). Star Trek é um esforço coletivo, de uma Humanidade que se uniu para resolver seus problemas.
No passeio no Star Trek Experience, em Las Vegas, a história era que a uma nave klingon teleportava a gente, os participantes do passeio. A Enterprise interceptou o feixe de transporte e fomos parar na NCC-1701D.
Entre nós havia um antepassado do Capitão Picard, que deveria ser protegido. Depois de muitas peripécias, correria dentro da nave e um acidente de turboelevador, fugimos em uma nave auxiliar, enfrentamos uma ave de rapina Klingon e somos salvos pela Enterprise.
Picard reaparece e agradece por termos colaborado, e restaurado a linha temporal. E, mesmo que somente um de nós seja seu antepassado, todos nós temos o Futuro em nossas mãos.
Star Trek é parte do zeitgeist mundial desde os anos 1970. Os acordes de Alexander Courage são imediatamente reconhecidos no mundo todo. Kirk, Spock, a Enterprise, existem no consciente coletivo de gerações. Richard Branson batizou sua primeira nave de VSS Enterprise. Uma campanha de cartas convenceu a NASA a batizar o protótipo de testes do Onibus Espacial de Enterprise.
Samantha Cristoforetti, astronauta italiana é tão fã que levou um uniforme da Frota Estelar para sua missão na Estação Espacial internacional. Gente que trabalha de verdade no e com o Espaço ama essas séries e filmes que fingem se passar no espaço, pois a mensagem é que qualquer um pode fazer parte do grupo, e contribuir para um futuro melhor. Seja você um Capitão de Nave Estelar, ou um modesto alferes passando pano no Holodeck.
Star Trek ensina que você não precisa ser especial para ser importante, que não precisamos de messias e salvadores da pátria, mas a lição mais importante, aprendi com Montgomery Scott: sempre multiplique seus prazos por 4, assim você garante sua reputação de milagreiro.
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