“Todo mundo sabia o que estava acontecendo – exceto os polinésios.” A frase, proferida pelo físico da Universidade de Princeton Sébastien Philippe, resume o teor de milhares de documentos sobre os testes nucleares que a França realizou, entre 1966 e 1974, na Polinésia Francesa.
Uma reanálise dos documentos tornados públicos em 2013 mostrou que o governo francês tanto subestimou a quantidade de radiação que se alastrou pelo arquipélago como quantas pessoas foram atingidas – gente que jamais soube do quão contaminadas as ilhas se tornariam.
Por quase uma década, o programa militar francês testou 41 bombas nucleares no território ultramarino, composto de 118 ilhas e atóis. Ao contrário do que o governo francês sempre afirmou, os testes jamais foram seguros para os moradores da região.
Nenhum aviso
Os documentos (que agora fazem parte do que é chamado de Moruroa Files, ou Arquivos Moruroa) revelaram que 90% dos 125 mil polinésios foram expostos à precipitação radioativa (dez vezes mais do que o estimado pelo governo francês) e em níveis muito mais altos que o divulgado.
Uma única bomba, chamada Centaure e detonada em 1974, lançou sobre toda a população do Taiti (à época, habitada por 87 mil pessoas) uma nuvem de resíduos nucleares. Os cientistas envolvidos no projeto previram (erradamente) que o cogumelo nuclear subiria oito quilômetros e seguiria para o norte.
Mas a zona de precipitação radioativa, depois de a explosão alcançar apenas cinco quilômetros de altura, se estendeu para oeste, varrendo as ilhas habitadas pelas 48 seguintes – e ninguém foi avisado.
A Comissão de Energia Atômica da França (CEA) estimou que a dose recebida por cada polinésio foi de cerca de 0,6 milisievert (1 mSv corresponde a dez radiografias de tórax), mas não incluiu na conta a radiação remanescente que se depositou no solo, na água, nos vegetais – por toda a parte.
“Os documentos sugerem que as exposições reais foram de duas a 20 vezes maiores do que as estimativas do governo francês”, disse Philippe.
Só o primeiro teste, chamado de Aldebarán, lançou sobre os moradores das Ilhas Gambier uma nuvem altamente tóxica – atrás dela veio a chuva contaminada que caiu sobre o arquipélago por dois dias, enchendo os açudes e as cisternas de radiação.
Risco menor
Existe na França uma lei que determina compensações financeiras para os habitantes da Polinésia Francesa que desenvolveram câncer por conta dos testes nucleares. Em 2010, foi promulgada uma lei que permitia qualquer pessoa exposta a precipitação radioativa na Polinésia ou na Argélia (outro campo de testes nucleares francês) ser compensada, caso fosse comprovado o surgimento de um dos 23 tipos de câncer associados à radiação, como o câncer de tireoide.
A lei, porém, estabelecia a chamada “presunção de causalidade”, ou seja, se o postulante à indenização fosse fumante, por exemplo, perderia o direito à indenização (a radiação era considerado “fator de risco insignificante”). Até 2017, foram rejeitadas 97% das reivindicações (1.008 de 1.039).
Em 2018, a regra caiu, e apenas pessoas expostas a mais de 1 mSv são elegíveis ao pedido de reparação, o que elevou o número de aprovações para 50% dos pedidos.
Silêncio
Philippe e a coautora do trabalho, a historiadora Sonya Schoenberger, da Universidade de Stanford, acreditam que a França deveria, independentemente de qualquer nível de radiação, “compensar quem sobreviveu aos testes e desenvolveu um câncer por conta da radiação”
O físico de Princeton calculou que cerca de dez mil pessoas se qualificariam retroativamente a receber compensações – uma conta que pode chegar a € 700 milhões agora, e mais € 24 milhões ao ano para indenizar futuras vítimas de carcinomas.
Até agora, o governo francês não se manifestou. “Meu medo é que eles simplesmente ignorem tudo”, disse o físico Emlyn Hughes, da Universidade de Columbia.
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