É interessante pararmos para refletir sobre a evolução de Ryu Ga Gotoku (o nome original de Yakuza) no ocidente. Com 15 anos de vida, a série da Sega só foi atingir o ápice de sua popularidade em 2020, com Yakuza: Like a Dragon, que inclusive foi um dos carros-chefes dos novos consoles da Microsoft, Xbox Series X|S, encerrando de vez uma histórica parceria com a Sony desde os tempos de PlayStation 2.
Aqui no Brasil, o impacto de Like a Dragon foi tão grande que, pela primeira vez na história da franquia, tivemos textos em português brasileiro acompanhando a atrasada versão de PlayStation 5 lançada em março deste ano. Não há como negar que a adição da saga ao Xbox Game Pass, de Yakuza 0 ao oitavo título, Like a Dragon, também contribuiu para que Ryu Ga Gotoku atingisse uma inédita parcela de jogadores no mundo todo – eu mesmo só pude conhecer as aventuras clássicas de Kazuma Kiryu pelo serviço da Microsoft na coletânea The Yakuza Remastered Collection.
Fonte: Voxel
A essa altura, a franquia já se desvinculou dos rótulos genéricos de “sucessora espiritual de Shenmue” e “GTA do Japão”; hoje, Yakuza é simplesmente Yakuza, detentor de uma fórmula muito particular. Lost Judgment, spin-off e sequência direta de Judgment, de 2018, é mais um exemplo de como a receita pode se adaptar facilmente a qualquer tipo de enredo, demonstrando que Kamurocho e Ijincho, os dois mapas de mundo aberto em que os jogos se situam, são poços intermináveis, sem fundo, para boas histórias. Confira a nossa análise do novo título de ação e aventura do Ryu Ga Gotoku Studio.
Temos um “Xeroque Rolmes” aqui de novo
Jogar este game é como assistir a um excelente filme neo-noir, estilo moderno que adaptou a fórmula do gênero noir criado e consolidado nas décadas de 1940 e 1950. Lost Judgment tem como destaque um roteiro intrincado, com muitas camadas para dar mais densidade à narrativa, que explora os aspectos psicológicos de seus personagens, principalmente suas fragilidades.
A segunda aventura se passa três anos após os acontecimentos da primeira e nos coloca novamente ao lado de Takayuki Yagami, um ex-advogado de defesa que agora atua como detetive particular. Antes de mais nada, é preciso dizer que não é necessário ter jogado Judgment para poder aproveitar sua continuação, ainda que um conhecimento prévio permita captar algumas referências, dando um pouco mais de contexto às conversas com nomes conhecidos.
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Yagami é escalado para desvendar um caso em que dois crimes foram cometidos simultaneamente e que o levam ao mesmo suspeito. Afinal, como uma pessoa pode estar em dois lugares diferentes na mesma hora? A história não se apega somente ao acontecimento principal e, de maneira inteligente, costura temas importantes, como depressão, bullying, assédio e suicídio, envoltos por uma densa atmosfera de suspense. Essa é a premissa.
À medida que se envolve com o caso, o nosso protagonista começa a perceber que os dois delitos, na verdade, estão relacionados a algo muito maior – vou me limitar a não dar muitos detalhes, em respeito a quem está jogando ou pretende jogar. Em comparação com a série Yakuza, Lost Judgment é muito mais centrado em narrativa e imprime um ritmo próprio, cadenciado, na forma como conduz a experiência.
Isso significa que os diálogos são mais extensos e aprofundados do que qualquer outro game que o Ryu Ga Gotoku Studio já tenha produzido, de modo a estimular uma conexão emocional com todos os personagens, não apenas com Yagami, o herói.
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Na prática, esse apelo emotivo faz com que o jogador realmente se importe com seus aliados, até por ter a ciência de que cada encontro com eles pode ser o último. Em contrapartida, a atenção desmesurada à construção de relacionamentos torna a história principal mais lenta e dramática do que deveria ser. Ademais, a ausência de textos em português ainda pode acabar desmotivando muita gente que não tem familiaridade com japonês ou inglês.
O conselho de amigo que eu posso dar é: tenha um pouco de paciência quando tiver que dar voltas e mais voltas sem que haja um avanço real no desenrolar da jornada. Acredito que alguns diálogos e acontecimentos poderiam ter sido simplesmente descartados em prol do ritmo, mas entendo que isso acabaria comprometendo bastante a duração da campanha.
Nos primeiros capítulos, Yagami passa a investigar a fundo um caso de bullying na escola Seiryo High, em Ijincho, protagonizando algumas das melhores partes da história – afinal, o detetive já não é lá tão jovem para se enturmar com os alunos, tampouco tem o perfil de “tiozão” gente fina. Ele ainda se vê obrigado a entrar, como uma espécie de conselheiro, para um clube estudantil de desvendar mistérios, tendo que ajudar seus aliados mais novos em missões secundárias.
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Pode não parecer grande coisa, mas o trecho escolar foge do script e ameniza o clima pesado que permeia a experiência do início aos créditos finais, mantendo até parte do humor característico de Yakuza. Com o intuito de ser um exemplo para os alunos, Yagami participa de corridas, usa seu requebrado para surpreender um clube de dança, arrisca sua integridade em lutas de boxe e inscreve-se em aulas de fotografia com o objetivo de ajudar a turma a preencher um portfólio com fotos de delinquentes.
É muito bacana ver como essas atividades extras, uma diferente da outra, são apresentadas ao jogador de maneira orgânica, servindo como ótimos “fillers” para quando você quiser dar uma pausa e apreciar o lado mais “light” de Lost Judgment. No fim das contas, a vida de um detetive, estando em um lugar maravilhoso como Tóquio, não pode se resumir apenas a trabalho; também tem que haver farra e diversão.
Obrigado pela recepção, Tóquio
Ter morado por exatas 43 horas em Kamurocho e Ijincho foi uma das minhas melhores vivências nos games em 2021. Esse foi o tempo que levei para terminar o jogo, também concluindo muitos dos casos secundários que estão disponíveis. Os cenários nos transportam de imediato às belezas da capital do Japão, conhecida por unir tradição e modernidade, e fazem valer cada minuto da viagem.
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Eu nunca fui ao Japão, infelizmente, mas Lost Judgment me aproximou de lá como poucos games conseguiram fazer, da mesma forma e na mesmíssima intensidade de Like a Dragon. O motor gráfico Dragon Engine, também utilizado em outros títulos recentes da franquia, continua fazendo milagre, especialmente no que diz respeito à qualidade dos rostos e expressões e ao nível absurdo de detalhes nos ambientes.
Se o primeiro game já promovia muitas distrações pela cidade, Lost Judgment é o playground definitivo do Ryu Ga Gotoku Studio. Além de cassinos, lojas de conveniência, restaurantes, fliperamas, minigames e muitos outros passatempos que já conhecemos, Yagami pode se esbaldar em corridas de drone, pistas de skate e jogos de tabuleiro, sem contar os inúmeros colecionáveis espalhados pelo dois mapas – o tempero da dificuldade a quem deseja platinar ou miletar.
O skate, aliás, é um meio de transporte mais econômico e divertido que o tradicional táxi, o que nos incentiva a explorar os quatro cantos de Tóquio à la Tony Hawk, com direito a manobras e tudo. Também não posso esquecer de mencionar a inclusão de Sonic the Fighters – o primeiro game de luta protagonizado pelo ouriço – à lista de títulos retrô, além de oito clássicos do Master System, como Alex Kidd in Miracle World e Fantasy Zone, jogáveis pela primeira vez dentro de um game da franquia.
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A construção de um mundo crível e vivo, onde coisas e pessoas reagem às ações de Yagami, com centenas de atrativos a serem degustados, foi pensada para que o jogador tenha sempre um local seguro a fim de respirar aliviado e se entreter quando não estiver desbravando a densa e exigente missão principal. Nem todas as atividades são inéditas, é verdade, muitas foram herdadas de Yakuza: Like a Dragon e do título anterior, mas são bem-vindas e igualmente recompensadoras.
Beat ’em up, Inspetor Bugiganga e cachorro treinado
Preciso confessar que adorei cada minuto que passei em Yakuza: Like a Dragon, inclusive ele consta na minha lista de games favoritos de 2020, mas eu torci o nariz para a mudança no combate; devo dizer que não me adaptei ao sistema por turnos – e olha que RPG é o meu gênero favorito. A ideia de que Yakuza é sinônimo de beat ’em up fixou na minha memória e não tem volta, por mais que os sistemas de Like a Dragon funcionem bem.
Lost Judgment, diferentemente de Yakuza: Like a Dragon, honra o beat ’em up tradicional, só que com algumas melhorias apreciáveis. O gameplay, o melhor dentre todos os jogos da desenvolvedora, é fluido e traz uma movimentação mais “solta”, o que acaba favorecendo a execução de combos e valorizando a violência extrema das finalizações. Yagami incorpora três tipos distintos de artes marciais, sendo o estilo Serpente, cuja postura é desenhada para desarmar inimigos, a principal novidade.
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Aqui, cada posição tem o seu próprio peso, a sua vantagem exclusiva, então cabe ao jogador determinar quando usá-las. A luta é contra um chefe? O Tigre, portanto, pode servi-lo melhor, já que amplifica ataque e defesa durante confrontos individuais. Para evitar cair na monotonia, Yagami pode desbloquear centenas de novos movimentos gastando o tal do SP, que são os pontos de experiência, na árvore de habilidades disponível em seu celular – o grind se faz necessário aos que tiverem a intenção de completá-la.
A única ressalva que tenho não é nem quanto ao combate em si, e sim em relação à frequência com que eles brotam, tal qual um RPG das antigas. A porrada praticamente não tem fim, então sempre haverá um grupo de inimigos à espreita, do outro lado da esquina, pronto para interromper sua diversão. Olha, é até possível fugir desses encontros aleatórios, mas há momentos em que você só quer explorar a cidade em paz, nada mais, sem se preocupar em fugir de gangues ou coisas do tipo. E se houvesse, por exemplo, uma opção para desativar as lutas temporariamente?
Ao se aventurar pelos casos de investigação, Yagami tem à disposição um vasto arsenal de parafernálias, como um amplificador de sinal para reconhecer a origem de sons, um detector capaz de identificar a presença de outros dispositivos tecnológicos, disfarces no melhor estilo Hitman e até um doguinho da raça corgi, treinado para farejar pistas.
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Já o aplicativo Buzz Researcher, desenvolvido pelo amigo hacker do protagonista, Makoto Tsukumo, permite buscar palavras-chave nas redes sociais, o que facilita a busca na internet por evidências e informações valiosas. Naturalmente, há métodos não ortodoxos, como escalar prédios e invadir lugares sem ser visto, além de rastrear e perseguir potenciais suspeitos. As mecânicas de stealth, inclusive, são bem simples e não agregam muito, mas são bem-vindas por darem outro tom ao gameplay.
Existem casos que parecem simples à primeira vista, mas exigem o uso de praticamente todos os gadgets oferecidos ao nosso herói. Gostei bastante que o jogo faz bom uso de todas essas ferramentas, criando missões inventivas e originais, que requerem um verdadeiro trabalho de investigação para serem concluídas.
Veredito: superior ao original
O que Lost Judgment tinha de fazer ele fez: equilibrou uma narrativa bem escrita com sistemas refinados de batalha e investigação, proporcionando uma das melhores experiências que a produtora de Yakuza já concebeu. A forma minuciosa como os personagens são desenvolvidos no decorrer da história, ainda que certos diálogos e objetivos se estendam mais que o necessário, permanece sendo o grande pilar que sustenta a estrutura desse spin-off.
Takayuki Yagami é, para mim, um dos personagens mais marcantes e inteligentes da atualidade, igualando-se a Kazuma Kiryu e Ichiban Kasuga, os icônicos protagonistas da franquia principal. Agora, o que nos resta é torcer para que o saldo positivo de Lost Judgment nos traga um terceiro game.
Nota do Voxel: 90
Com clima de filme noir, Lost Judgment equilibra narrativa, combate e investigação em aventura recheada de núcleos e camadas
Pontos positivos
- História bem escrita e repleta de camadas
- As missões secundárias são tão boas quanto a principal
- O beat ’em up herdado de Yakuza está melhor que nunca
- Personagens memoráveis, com destaque à atuação perfeita do protagonista e de seus aliados mais próximos
- O conteúdo reserva dezenas de horas a quem pretende desvendar todos os segredos dos dois mapas
- A Dragon Engine realmente faz milagre no visual
- Mundo verossímil
Pontos negativos
- Os encontros frequentes com inimigos podem incomodar depois de muitas horas
- Conversas e missões irrelevantes na história principal atrapalham o ritmo, deixando o jogo mais enrolado que o normal
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