Durante a Segunda Guerra Mundial nenhuma arma salvou mais vidas do que o Torpedo Mark 14 da Marinha dos Estados Unidos, mas chegar até ele foi complicado, levou anos e custou uma fortuna, infelizmente a Marinha tinha os dois, e conseguiu criar uma das armas mais ineficientes da História.
Em 10 de Junho de 1943 o porta-aviões japonês Hiyo aparecia como um alvo deliciosamente convidativo no periscópio do USS Trigger. Os artilheiros calculavam freneticamente os ângulos e velocidades. Com os resultados conferidos, sinalizaram ao Capitão que tinham uma solução de tiro.
Sem hesitar o Capitão Roy S. Benson ordenou que os seis torpedos dos tubos dianteiros fossem lançados. No final das contas somente um explodiu em contato com o alvo, que mesmo danificado fugiu protegido por suas escoltas. Os outros torpedos ou não explodiram ou detonaram prematuramente.
Não seria a única vez que o torpedo Mark 14 deixaria os americanos na mão.
Em 1941 o Mark 14 já não funcionava. O Comandante Tyrell Jacobs, do USS Fargo fez onze disparos em um dia, com zero sucessos, ele ficou tão pistola que quebrou silêncio de rádio pra xingar muito no Twitter.
Havia algo muito errado com o Mark 14, mas o Bureau de Munições da Marinha insistia que o torpedo era perfeito, os usuários que estavam segurando errado.
As acusações iam de incompetência e falta de treinamento a até sabotagem. Pior, gente do alto escalão defendia o Bureau com unhas e dentes. Só quem estava no mar sabia que não importa o que fizessem, o Mark 14 não colaborava, e ele deveria ser estado da arte.
O Torpedo Mark 14
Na Década de 30 os EUA Os EUA ainda não eram uma potência militar, estavam defasados em todas as áreas. Eles ainda usavam o torpedo Mark 10, que entrou em serviço em 1915. Era uma relíquia da Primeira Guerra Mundial e totalmente inadequado às necessidades do mundo moderno.
Um projeto do Bureau de Munições da Marinha especificou o que seria o Mark 14, e o projeto começou em 1931. Ele usaria a melhor tecnologia disponível; seria movido por um motor queimando etanol e metanol, alimentado com ar comprimido e capaz de alcançar qualquer embarcação da época.
Sua arma secreta era o Detonador Mark 6, desenvolvido como Segredo de Estado, apesar de usar a mesma tecnologia já desenvolvida por países como Alemanha, Inglaterra e Japão.
A gente imagina que idealmente um torpedo deve bater na lateral do navio e explodir, mas mais eficiente que abrir um buraco, é explodir debaixo do navio. A pressão causada pelo deslocamento da água literalmente parte o navio ao meio.
Fazer o torpedo passar debaixo do alvo é fácil, é só regular a profundidade, mas como detonar? A solução secreta americana que todo mundo usava era um sensor que monitorava o campo magnético da Terra, e quando detectava uma anomalia súbita, causada por um imenso navio de metal, acionava um detonador.
Essa tecnologia toda resultou em um torpedo caríssimo, dependendo da fonte ele chegava a custar o mesmo que um caça, e por causa disso a Marinha relutava em testar em condições reais. Aparentemente não foi feito nenhum disparo “à vera”.
A produção também não chegava nem perto do planejado, a fábrica original só conseguia construir três por mês. Por isso, durante a maior parte da Guerra, Mark 14s para uso em treinos eram muito limitados, geralmente usados sem ogivas e com flutuadores para posterior recuperação.
Quando a Segunda Guerra começou (para os EUA), foi descoberto que o Mark 14 tinha não um, mas vários problemas, um mascarando o outro.
Com mais de 800 torpedos disparados e a grande maioria não tendo servido pra nada, os comandantes começaram a se rebelar contra o Bureau de Munições, que dizia que não havia nada errado e se recusava a testar os torpedos.
O primeiro problema: Profundidade
Por ordem do Contra-Almirante Charles Lockwood, em Junho de 1942 fizeram um teste: Colocaram uma rede anti-submarinos, um submarino disparou um Mark 14 contra ela, e viram aonde atingiu. O Mark 13 deveria viajar a 3 metros de profundidade, mas o furo estava a 11 metros. Isso significava que o detonador de contato não funcionaria, e o detonador magnético também ficaria fora de ação, o sinal a essa distância do casco do inimigo seria fraco demais.
O problema foi finalmente diagnosticado, em partes. Primeiro, os testes foram feitos com torpedos sem a ogiva explosiva, com a frente do torpedo cheia de ar, para que flutuasse. O torpedo real seria bem mais pesado, com 500Kg de Torpex.
Agora, a parte sutil e elegante do problema: A profundidade do torpedo era regulada por um sensor de pressão; muitos comandantes haviam resolvido parte do problema programando o torpedo para zero de profundidade, o que fazia com que ele viajasse a 3 metros abaixo das ondas, a profundidade ideal.
Em testes estáticos o sensor funcionava perfeitamente bem. O que mudava: A hidrodinâmica do torpedo Mark 14, muito mais rápido que os da geração anterior, criava zonas de baixa pressão na traseira, aonde ficava o sensor. A pressão era lida e dava informação de que estavam bem mais no raso do que realmente estavam.
O segundo problema: O detonador magnético.
Um submarino chegou a atirar 13 torpedos contra uma traineira japonesa, sem nenhum resultado. O detonador magnético era totalmente não-confiável, e a culpa era dos projetistas, que não entendiam que o campo magnético da Terra não é constante. Ele varia de lugar pra lugar, e os testes e desenvolvimento foram feitos usando parâmetros de uma região bem específica dos Estados Unidos.
Quando o torpedo era disparado do outro lado do mundo, o sensor se confundia, as medições mesmo longe dos alvos às vezes ultrapassavam o limite programado, e o torpedo explodia no meio do caminho.
As tripulações tentaram minimizar isso desconectando o detonador magnético. O Bureau de Munições insistia que nada havia de errado e ameaçava com corte marcial quem desconectasse o detonador. Com autorização dos capitães as tripulações desativavam o negócio e falsificavam os registros dizendo que não tinham mexido em nada.
Mesmo assim, ainda muitas falhas. Às vezes num ataque by the book, com o submarino a 90 graus do alvo, um tiro direto aonde era só o pino de contato na cabeça do torpedo encostar no casco e fazer click, nada acontecia. Com o tempo descobriram que atacar de ângulo, mesmo fora da doutrina produzia resultados melhores.
O terceiro problema: O detonador de contato
Em Julho de 1943 o USS Tinosa encontrou o Tonan Maru III, um navio de processamento de baleias de 19 mil toneladas. O navio, não as baleias, ninguém está fatshaming Moby Dick, não me cancelem.
Quatro torpedos foram disparados, dois acertaram, o navio parou. O Comandante Dan Daspit disparou mais dois torpedos. Acertaram, nada. Irritado ele manobrou o submarino pra uma posição a 90 graus do alvo, posição ideal. Disparou NOVE torpedos, que atingiram com o mesmo efeito de uma arma de Airsoft acertando Galactus. Com um último torpedo sobrando, ele voltou ao porto, achando que tinha um lote com defeito.
O Bureau de Munições, lalalala você já sabe. Nada de errado com o torpedo, vocês estão segurando errado.
Investigações independentes do Bureau descobriram o problema: O gênio que projetou o Mark 14 criou um mecanismo complicado de detonação com um pino principal que acionava um pino secundário, a 90 graus. Quando o torpedo, a quase 90Km/h atingia o navio, o pino principal exercia força demais, dobrando o pino secundário, impedindo que ele corresse seu curso e acionasse a espoleta.
Em testes soltando os torpedos na vertical de uma altura de 30 metros, para simular um impacto de 90 graus a 46 nós de velocidade, 70% das vezes o mecanismo quebrava antes de detonar a ogiva.
A solução que o Bureau não gostou mas os capitães bancaram foi usar oficinas nas bases navais, os marinheiros dos submarinos criavam versões em alumínio dos pinos, que por serem mais leves que as de aço, não se torciam tanto e se moviam mais rápido, dando tempo da “informação” passar antes do mecanismo de detonação ser destruído pelo impacto.
O mecanismo do detonador de contato foi reprojetado, e os primeiros torpedos sem nenhum defeito entraram em operação em Setembro de 1943. No total foram 21 meses com a Marinha dos EUA, em guerra, tendo que usar torpedos horrendamente não-confiáveis.
No final o Mark 14 entrou para a História como um dos melhores torpedos da Segunda Guerra Mundial, apesar de todos os esforços do Bureau de Munições, que com sua arrogância, prepotência e teimosia mudaram o cenário da Guerra do Pacífico. Talvez o Japão tivesse se rendido bem mais cedo, se os americanos fossem mais eficientes em eliminar seus alvos.
O que salvou o Mark 14 e muitas vidas americanas foi a obstinação dos capitães em tentar descobrir como usar a arma, mesmo defeituosa, e na confiança que o Almirantado tinha em seus subordinados, acreditando na palavra dos comandantes, e não na do Bureau de Armamentos. Mesmo assim, foi talvez o maior desastre burocrático de toda a Guerra.
Fontes:
Source link