Tricoteira não é a primeira palavra que a gente pensa quando imagina espiãs, agentes secretas e líderes da Resistência Francesa, mas é a que melhor descreve várias heroínas, incluindo Phyllis “Pippa” Latour.
No mundo real James Bond seria o pior espião do mundo, bem como qualquer sujeito de sobretudo, chapéu e atitude suspeita. O melhor espião do mundo é aquele que você jura que não é espião nem em um milhão de anos.
Também no mundo da espionagem evita-se ao máximo todo o aparato tecnológico, Hitler não distribuía Enigmas pra todo mundo. Qualquer equipamento de espionagem que o sujeito use uma ou duas vezes por mês precisa ser escondido 24/7.
Então a melhor forma é você não parecer um espião e seu equipamento ficar exposto disfarçado de algo inocente, à prova de qualquer exame superficial.
Uma técnica muito comum é a esteganografia, um nome complicado para algo simples: mesclar uma mensagem em uma imagem ou texto, sem que ninguém perceba. Isso pode ser feito de inúmeras formas, das mais simples às mais complexas. Você pode combinar com seu contato na KGB que a mensagem começará no 5º parágrafo do post diário em seu blog, consistindo da primeira letra a cada 5 palavras.
Também existe esteganografia em imagens. Você pode aplicar todas as cifras que quiser na mensagem em texto, e ainda escondê-las em uma inocente foto. Como? Simples. Em uma imagem comum, com 24 bits de cor, cada pixel é definido por três bytes, com valor entre 0 e 255 para as cores Vermelho, Verde e Azul, o bom e velho RGB. Juntos eles produzem 16.777.216 combinações de cores. A visão humana num sujeito com percepção excelente distingue até 10 milhões de cores.
NOTA: Existem mulheres mutantes que nascem com quatro receptores de cores os olhos e conseguem distinguir 100 milhões de cores, mas são bem raras.
Portanto, se você alterar um bit menos significativo em uma cor, para quem está olhando a diferença é zero, mas o bit foi alterado. Imagine que você altera um bit em um pixel a cada 150 pixels, associando aquele bit com sua mensagem. Em teoria dá pra codificar imagens inteiras dentro de outras imagens, sem nenhuma alteração perceptível.
Agora esqueça computadores, internet, bits. Você está na Bélgica, Primeira Guerra Mundial, servindo no exército alemão, e não consegue entender como toda hora seu trem com munições é sabotado ou interceptado. Os soldados patrulham as estações, prendem suspeitos, mas as informações continuam sendo repassadas.
Quando a guerra acaba, você descobre: Nas vizinhanças das estações havia casas, nas varandas das casas velhinhas belgas em cadeiras de balanço, tricotando. Elas observavam os trens que passavam. Quando viam um trem transportando tanques, faziam um ponto diferente. Se fosse um trem de tropas, outro ponto.
Aos olhos não-treinados um ponto diferente no meio de milhares era imperceptível, no máximo pareceria como um erro.
As velhinhas terminavam suas meias ou cachecóis, e repassavam para membros da resistência, que então faziam a informação chegar ao comando aliado. Os alemães nunca desconfiaram da técnica.
Com a Segunda Guerra Mundial, os aliados ficaram num impasse: Ao mesmo tempo em que faziam campanhas para as mulheres tricotarem meias e cachecóis para as tropas, morriam de medo do truque ser usado pelos nazistas.
Como forma de tentar controlar o uso nefasto de tricô, nos Estados Unidos o governo chegou a censurar e proibir a publicação de modelos para tricô e bordado, assim o inimigo não poderia comparar o modelo com o material recebido e deduzir os pontos errados.
Já na Europa a técnica do tricô era usada por muitas mulheres da Resistência Francesa, e foi fundamental para uma moça com uma vida muito trágica.
Phyllis “Pippa” Latour nasceu na África do Sul, filha de um médico francês e uma inglesa. Quando Pippa tinha três meses de idade, seu pai foi morto em uma das guerras tribais da região.
Três anos depois sua mãe se casou com um piloto de corridas, mas de novo a tragédia apareceu: Era comum os pilotos botarem as esposas para pilotar os carros, disputando entre si. Em uma dessas corridas a mãe de Pippa sofreu um acidente e também morreu.
Criada pela família de um primo do pai, Pipa viveu no Congo com que chama “a única família que conhecia”. Até que o pai de sua madrinha foi morto pelos nazistas. Pippa considerava o coroa como um avô, e para piorar, a madrinha, a quem ela também amava, cometeu suicídio na cadeia, depois da notícia da morte do pai.
Pippa se mudou para a Inglaterra, aonde se alistou na WAFF (Women’s Auxiliary Air Force) e treinou para ser mecânica de aviões, mas o Destino não quis, e por Destino eu digo o SOE – Special Operations Executive, uma organização secreta do governo especializada em ações de espionagem em território inimigo.
Ela foi sumariamente retirada de serviço, e mandada para treinamento especial, sem ninguém dizer o motivo ou o objetivo. No treinamento não havia distinção entre homens e mulheres, era punk pra todo mundo.
Pippa aprendeu a codificar mensagens, a operar, camuflar e consertar transmissores de rádio, se tornou proficiente no uso de armas. Um assaltante conhecido, especializado no roubo de casas ganhou um perdão especial para se tornar instrutor, e ensinou os alunos a arrombar fechaduras (click on one, nothing on two…), escalar paredes, abrir janelas e subir em árvores.
Ao final do treinamento, os que sobraram receberam a opção de se tornar agentes do SOE operando na França – Pippa falava francês fluente sem sotaque). Deram três dias para decidirem. “Eu não preciso de três dias”, disse Pippa.
Em 1º de Maio de 1944 ela saltou de paraquedas na Normandia, encontrando-se com seus contatos da Resistência. Sob o codinome Genevieve, ela deveria ser a radiotelegrafista de uma célula da Resistência, mas Pippa foi muito além.
Apesar de ter 23 anos, ela seria chamada pelos locais de -como se diz mignon em francês?- e se passou perfeitamente por uma menina de 14 anos.
Sua história era que morava com parentes no interior, fugindo da guerra nas grandes cidades. Pippa tinha três rádios escondidos em casas de aliados, e seis bicicletas disfarçadas pela região. Ela constantemente trocava de bicicleta, para confundir os curiosos.
A maior parte do tempo ela fazia o papel de adolescente chata. Pippa visitava as várias guarnições alemães, vendendo sabão para os nazistas, conversando, puxando papo até ficarem de saco cheio dela. Ninguém imaginava que aquela adolescente curiosa fazendo perguntas inoportunas era uma espiã. Nenhum espião perguntaria coisas como “quantos tanques desses vocês tem?”
Os soldados mais bobinhos davam corda, e sem perceber passavam informações suculentas para a ninfeta tagarela.
Mais tarde Pippa compilava o que tinha recolhido, e codificava usando cifras de uso único. As cifras estavam codificadas em seu lenço de cabelo. Ela andava sempre com agulha e linha de tricô, para marcar as cifras que já tinha usado.
Conta Pippa que uma vez ela e outras mulheres foram detidas por uma patrulha da SS, e uma oficial feminina as fez tirar a roupa. Para fins de visualização, imaginemos que a oficial foi a Ilsa:
A oficial nazista começou a olhar com desconfiança para os cabelos de Pippa, como se ela estivesse escondendo algo entre eles. De forma confiante Pippa puxou seu lenço repleto de códigos, balançou os cabelos estilo comercial de xampu, e Ilsa se deu por satisfeita.
Pippa vivia um jogo de gato e rato. Os nazistas levavam em média uma hora e meia para identificar com precisão a origem de uma transmissão clandestina. Pippa levava meia-hora para transmitir seu relatório. Ela chegou tão perto de ser localizada que acabou pedindo que os aliados bombardeassem um posto de escuta.
Para desespero de Pippa, uma mulher e duas crianças foram mortas no ataque, e ela nunca esqueceu a imagem.
Ela ficou na França ocupada até o final da Guerra, morando no mato, escondendo-se dos nazistas, às vezes usufruindo da hospitalidade de alguma família, educada o suficiente para dividir com ela uma refeição de esquilo, que na verdade era rato mas a família era educada demais para contar.
Com a derrota dos nazistas Pippa voltou para a Inglaterra, aonde se casou com um engenheiro e tiveram quatro filhos.
A família se mudou para a Austrália, e eventualmente para Fiji. Pippa eventualmente voltou para a Austrália com os filhos, e finalmente se acomodou na Nova Zelândia.
Phyllis “Pippa” Latour nunca falou de sua participação na Guerra. A família só descobriu seu lado espiã no ano 2000. Ela também não contou pra ninguém que foi condecorada com a Ordem do Império Britânico, a Medalha de Defesa, a Medalha de Guerra, a Froix de Guerre e a Legião de Honra, a mais alta condecoração da república francesa.
Agora o melhor de tudo: A motivação de Pippa? “Vingança”. Os nazistas não deveriam ter matado seu avô de consideração.
Minto: O melhor de tudo mesmo é que Phyllis “Pippa” Latour ainda está viva, com 99 anos ainda morando em Auckland. Arrastada para uma homenagem em uma escola, Pippa foi taxativa em seu discurso:
“Não fui só eu que fui enfiada para detrás das linhas inimigas da França e da Alemanha. Foram 41 de nós e dessas 41 garotas, 14 foram presas e executadas. O que eu tenho a dizer aos jovens – não há glória na guerra. Obrigado.”
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