As novas projeções do estado de pandemia mundial em consequência do novo coronavírus criam um cenário de incertezas para a economia e a saúde mundial. A fim de conter os danos gerados pelo vírus, países por todo o mundo iniciaram um bloqueio chamado de lockdown, termo em inglês que representa um estado de quarentena, que restringe o trânsito de pessoas, proíbe viagens e abertura de lojas e mantém apenas as atividades essenciais.
No Brasil, os efeitos da covid-19 já estão começando a ser sentidos pela população. Grande parte do país vive um momento de quarentena, indicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). E quais serão os possíveis impactos na economia do nosso país ocasionados pelas restrições impostas nas vidas das pessoas?
Quase um pós-guerra
O economista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) André Moreira Cunha descreve que a crise como um cenário pós-guerra. “A crise é profunda e gera um impacto desorganizador, assim como o vírus, que se caracteriza por baixa taxa de mortalidade e alta taxa de contágio”, explica Cunha ao TecMundo.
Cunha ainda apresenta que “ainda não temos a dimensão desse impacto, somente projeções, mas todas indicam o efeito equivalente ao de uma guerra, e o que chama atenção é velocidade desse impacto”.
Na última segunda-feira (30), em entrevista coletiva, o diretor-geral da organização Tedros Adhanom Ghebreyesus voltou a enfatizar a importância do isolamento físico como principal e única medida que a população mundial tem para derrotar o vírus.
Economia
Segundo o Relatório de Inflação de março de 2020 do Banco Central, a economia mundial e brasileira sofrem um grau de incerteza elevado devido à pandemia do novo coronavírus. O relatório indica que a epidemia provoca uma desaceleração significativa da atividade econômica, assim como diminuição nos preços das commodities e aumento considerável da volatilidade nos preços de ativos financeiros.
O Banco Central destaca que, apesar do estímulo monetário proveniente das principais economias, o contexto atual tem criado um cenário desafiador com grandes riscos; como consequência, existe a realocação de ativos, que provoca um substancial aperto nas condições financeiras.
O economista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Fabian Scholze Domingues explica que a economia se divide em duas grandes forças: oferta e demanda. A pandemia do novo coronavírus e a paralisação (ou redução acentuada da atividade econômica), em virtude da crise sanitária, já estão mostrando danos em ambas: na oferta, pela impossibilidade de diversos trabalhadores e empresas produzirem; e na demanda, pela significativa diminuição do consumo gerada pelas restrições de mobilidade impostas pelas autoridades sanitárias.
Domingues também destaca que a demanda e a oferta podem ser separadas em nacional e internacional e que o Brasil é um dos grandes ofertantes de bens primários no mercado mundial. Recentemente a China, um dos maiores clientes brasileiros, reduziu a demanda, diminuindo as compras de bens primários do Brasil e do Oriente Médio. As consequências disso se refletem em diversos aspectos, mas podem ser vistas primeiramente na redução das commodities.
“Uma das consequências dessa redução da demanda mundial por commodities é a queda nos preços”
“Uma das consequências dessa redução da demanda mundial por commodities é a queda nos preços — fato já observado nos mercados de petróleo —, mas também impactará a demanda por outros produtos primários, como ferro, alumínio, soja, carne, algodão, entre outros mercados em que o Brasil costumava ganhar muito dinheiro”, afirma Domingues.
O efeito disso para a economia, segundo Domingues, é que o Brasil sofrerá uma diminuição de preços e quantidades de seus produtos primários. A condição de produção também será afetada, e haverá um aumento nos preços dos produtos produzidos em terreno nacional, em virtude das restrições de mobilidade dos trabalhadores e das empresas.
Outro setor afetado é o das importações, que terá diversas perdas em função da covid-19. “No final, o ajuste entre preços e quantidades, entre demandantes e ofertantes, fará os produtos primários, principais itens da pauta de exportação brasileira, serem produzidos a preços maiores e a quantidades menores, de modo que o Brasil terá enormes perdas naquilo que, até então, era o carro-chefe e setor dinâmico da economia brasileira: as exportações”, evidencia Domingues.
“Os efeitos ainda são incertos, mas é provável que a moeda brasileira continue apresentando desvalorização, tendo como resultado o encarecimento dos produtos importados”
O economista ainda destaca que todas as variáveis macroeconômicas serão atingidas com a crise — taxa de câmbio, inflação e crescimento são algumas. “Os efeitos ainda são incertos, mas é provável que a moeda brasileira continue apresentando desvalorização, tendo como resultado o encarecimento dos produtos importados. Também é esperada uma alta nos preços; isto é, pressões inflacionárias, em um primeiro momento, dos preços livres, e, em um segundo momento, dos preços administrados, pois a maioria dos contratos preveem uma cláusula de ajuste cambial”, explica Domingues.
A taxa de crescimento é uma das variáveis que mais dependem da circulação de pessoas e mercadorias, então será uma das mais penalizadas — além da diminuição do crescimento da economia brasileira como um todo, que impactará os índices de fome no país.
“Já podemos adiantar a redução da atividade econômica e, portanto, esperar a diminuição, para taxas negativas, do crescimento da economia brasileira, que já não vinha bem. O impacto geral e mais observável será o empobrecimento geral da população, por conta da diminuição global da capacidade de produção e consumo. Especificamente no Brasil, teremos sérios problemas de segurança alimentar e nutricional, com aumento drástico da fome”, alerta Domingues.
Quais são os mais afetados na crise?
O economista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Maurício Andrade Weiss assinala os setores que serão mais afetados pela crise a princípio e em longo prazo. “O que estamos vivendo agora é uma crise econômica, embora o motivo seja uma pandemia. Normalmente, as grandes crises econômicas repercutem no mercado financeiro e, como o próprio mercado tenta antecipar os movimentos, quando acontece algo, o primeiro a sentir de maneira mais brusca é o financeiro”, afirma.
O economista destaca que os setores financeiro e de serviços já apresentaram efeitos logo no início. “O setor financeiro respondeu muito rapidamente a essa crise em termos negativos. No Brasil, a bolsa estava em torno 120 mil pontos e despencou para -70. Quando as pessoas optam por ficar mais em casa, o setor de serviços é primeiro a sentir, especialmente os não essenciais, como o comércio. Já para um supermercado e uma farmácia, que fazem parte dos serviços essenciais, em um primeiro momento é favorável, por exemplo”, explica Weiss.
No decorrer da crise, outros setores são afetados, como hotéis e companhias aéreas — cenário percebido logo no primeiro momento por conta do alastramento do vírus, segundo o economista. Ele ainda acrescenta que outras empresas a sofrerem serão as grandes indústrias, e as únicas que não sentirão um impacto tão grande são ligadas ao combate à covid-19.
O economista Fabian Scholze Domingues confirma que diversos setores serão atingidos e que a taxa de desemprego subirá em curto prazo no Brasil.
“Alguns analistas falam em 40 milhões de desempregados “
“Ainda é cedo para fazer uma avaliação mais precisa, mas o certo é que a taxa de desemprego irá aumentar muito em curto prazo (até 1 ano) — alguns analistas falam em 40 milhões de desempregados —, penalizando principalmente as classes mais baixas, como empregados autônomos, diaristas, prestadores de serviço, pequenos comerciantes e produtores de bens não essenciais. Certos setores das classes médias, em particular, profissionais liberais também sofrerão bastante os impactos da crise sanitária em curto e médio prazos”, acrescenta Domingues.
Weiss também aponta que as primeiras pessoas afetadas são os autônomos, que trabalham por conta própria e sem carteira assinada. “Uma crise normal já gera problemas para esse trabalhador autônomo, pois diminui o número de pessoas requisitando seus produtos/serviços; na atual crise, porém, mesmo quem tem renda para contratar um serviço acaba deixando de contratar, por medo de ser contaminado.”
“O problema é que, no Brasil, o percentual de trabalho informal tem crescido muito. Quase 50% dos trabalhadores são informais”
Além disso, o economista descreve que as pessoas mais fortemente impactadas são as que desempenham serviços que necessitam de trabalho físico, como catadores de recicláveis, que já vivem com uma renda baixa. “O problema é que, no Brasil, o percentual de trabalho informal tem crescido muito. Atualmente, temos recorde de emprego informal. Quase 50% dos trabalhadores são informais. No ano passado, até houve uma queda de desemprego, mas ela foi basicamente via trabalho informal”, acrescenta Weiss.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Brasil o índice de trabalho informal atingiu um nível recorde de 41,3% da população ocupada em 2019.
(Fonte: IBGE/Reprodução)
Outro tipo de trabalhador que será fortemente impactado é o intermitente, categoria criada após a reforma trabalhista. “Ele tem carteira assinada, não é autônomo, mas seria a segunda categoria mais afetada. Isso sem contar os que já estão na linha da pobreza, sem nenhum tipo de renda”, alega Weiss.
Na sequência evidenciada pelo economista estão as microempresas, que têm um faturamento reduzido, menos capacidade de caixa e podem ser afetadas pela crise e gerar falência, caso não tenham medidas de socorro.
Impactos na Saúde
O Ministério da Saúde do Brasil criou um painel sobre coronavírus que é atualizado por dados transformados em gráficos que ilustram o cenário do vírus pelo país. Até as 14h do dia 01 de abril, o Brasil tinha 5.717 casos confirmados, 201 óbitos e 3,5% de letalidade. O gráfico dos casos apresenta diariamente um crescimento exponencial.
(Fonte: Ministério da Saúde/Reprodução)
Impactos do Lockdown Vertical e Horizontal
Os cientistas Wladimir Lyra, doutor da New Mexico State University, e José Dias do Nascimento Júnior, professor e doutor em Astrofísica da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e astrônomo associado ao Harvard-Smithsonian Center for Astrophysics, criaram um modelo matemático em Python — linguagem de programação usual para análise de grande massa de dados. Segundo as projeções do pior cenário, a previsão é de que haja 2 milhões de mortos no Brasil. As atualizações ocorrem pelo portal do coronavírus da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Na última terça-feira (31), a previsão divulgada era de 200 mortes por dia no Brasil até o dia 30 de abril em um cenário pessimista sem lockdown.
(Fonte: Modelo matemático de Wladimir Lyra e José Dias do Nascimento/Reprodução)
“O lockdown é muito importante, pois é o mecanismo pelo qual o contágio pode ser freado”
“O lockdown é muito importante, pois é o mecanismo pelo qual o contágio pode ser freado. É reduzido a níveis mínimos esse contágio que se dá entre pessoas, porque no lockdown só pode sair de casa quem tem autorização para isso: uma pessoa por família para compras no supermercado, pessoas que trabalham em setores estratégicos da sociedade que não podem parar e algumas especiais de acordo com o caso. Portanto, a circulação do vírus não desaparece, mas cai muito”, explica Ion de Andrade, epidemiólogo da Secretaria do Estado da Saúde Pública do Rio Grande do Norte e pesquisador do Laboratório de Inovação Tecnológica em Saúde da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte).
O epidemiólogo ainda explica como as poucas vagas na saúde impactam o sistema. “O sistema de saúde não tem vagas para todos. Ele só suporta se a epidemia tiver um curso não explosivo, portanto é o lockdown que permite o melhor cenário para que as pessoas sejam absorvidas pelo serviço de saúde.”
Com base nos dados do modelo matemático, o cientista José Dias do Nascimento Júnior concorda que a explosão de casos pode inviabilizar o sistema de saúde devido à superlotação. “Vai haver uma explosão de internações; os problemas respiratórios já estouraram com relação à média nacional. O que vai acontecer é que a maioria dos laudos e das causas de mortes vão aparecer como problemas respiratórios ou pneumonia, mas na verdade serão covid-19.”
Brasil segue a tendência de França e Itália, registrando aumento de 33% em números de mortos
(Fonte: Modelo matemático de Wladimir Lyra e José Dias do Nascimento/Reprodução)
Segundo dados da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), entre os dias 15 e 21 de março, o Brasil alcançou o total de 2.250 pessoas internadas somente com covid-19. A média semanal de outros anos, sem covid-19, era de 250 a 300 nos meses de fevereiro e março.
Medidas que podem ser tomadas para achatar a curva da recessão
O Banco Central apresentou, no Relatório Trimestral de Inflação, um gráfico que demonstra a curva epidemiológica e de recessão econômica, para exemplificar dois possíveis cenários para o Brasil. O conteúdo pode ser assistido pelo YouTube.
(Fonte: Banco Central/Reprodução)
A parte superior se refere aos novos casos da doença, em relação a uma linha fixa em pontilhado, que demonstra os números de leitos disponíveis e o eixo do tempo na cor cinza. Já a parte inferior considera a severidade da recessão econômica ao longo do tempo.
As curvas demonstram em vermelho os novos casos sem política de contenção e a recessão sem política de contenção. Em azul, a curva apresenta a recessão com política de contenção e os novos casos com política de contenção.
Nota-se que os novos casos sem política de contenção estão com uma curva muito maior, que ultrapassam em grande parte o número de leitos disponíveis em um curto espaço de tempo e a recessão sem política de contenção está com um curvatura menor, mais achatada e distribuída durante um maior espaço de tempo.
Com a política de contenção, os novos casos apresentam-se mais distribuídos tanto no tempo quanto nos números de leitos disponíveis — apenas uma pequena parcela da curva não seria atendida pelo sistema. Já a severidade da recessão com a política de contenção será mais significativa, apresentado uma curva maior em um tempo também maior.
O economista Maurício Andrade Weiss descreve como funcionam as consequências das medidas: “ao pedir para as pessoas ficarem em casa, você diminui o trabalho e a produção, bem como a demandas por serviços. Consequentemente, prolonga a recessão na economia”.
Um dos principais problemas do lockdown são as pessoas que ficam sem renda para sobreviver em uma crise como a da pandemia do coronavírus. “O que viabiliza o serviço de saúde são as medidas restritivas que podem começar com o isolamento social e ser acentuada até o nível de lockdown. Um dos grandes obstáculos do lockdown é a questão da renda, porque as pessoas não trabalham, portanto pode ser demitidas”, explica Andrade.
A partir das medidas para diminuição da curva epidemiológica, o país está vulnerável a uma curvatura maior na recessão. A recessão econômica é quando um país apresenta diminuição no Produto Interno Bruto (PIB) durante 2 trimestres consecutivos. “A crise inevitavelmente vai afetar o PIB. O PIB é a produção que acontece no país durante um determinado período. Geralmente é medido por ano, mas também tem dados trimestrais”, descreve Weiss.
Segundo a projeção do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), considerando o cenário de quarentena até o fim de abril o PIB irá encerrar o ano com variação negativa de 0,4%; já em um cenário de isolamento de 2 a 3 meses, os resultados seriam entre -0,9% e -1,8%.
Os reflexos econômicos de quando um país não está indo bem aparecem no PIB, que representa a soma em valores monetários de tudo que é produzido em bens e serviços de uma determinada região. “O PIB em si não afeta diretamente a vida das pessoas, mas gera reflexos a todos. Por exemplo, com produção mais elevada, há mais renda e empregos. O governo tem mais receita e facilita os gastos”, acentua Weiss.
“Quando existe esse tipo de crise, inevitavelmente você tem uma recessão. Só que a crise econômica é o menor dos problemas. A prioridade agora é achatar a curva da pandemia”
O economista explica que o principal foco no momento é o achatamento da curva da epidemia. “Quando existe esse tipo de crise, inevitavelmente você tem uma recessão. Só que a crise econômica é o menor dos problemas. A prioridade agora é achatar a curva da pandemia”, argumenta Weiss.
Se a curva não diminuir, isso significa que muitas pessoas irão procurar o sistema de saúde ao mesmo tempo, e essa superlotação fará com que o número de mortos aumente. “As pessoas podem até argumentar que a mortalidade não é tão alta; o problema é que, se todo mundo for infectado, não haverá hospitais, leitos ou respiradores, o que levará a um número maior de óbitos. Se não existirem medidas de contenção, o número de mortos será muito maior”, esclarece Weiss.
“A recessão é um mal absurdamente necessário para travar um mal ainda maior”
A economista Glaucia Angelica Campregher acentua que a recessão não é algo bom para o país, mas que no momento é a saída para achatar a curva do novo coronavírus: “a recessão é um mal absurdamente necessário para travar um mal ainda maior, que é a curva da pandemia que não tem achatamento e só sobe”. Ela ainda vai além. “Voltar para rua agora é agravar a recessão amanhã”, alerta.
Socorro econômico
Os professores da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS lançaram um documento com 32 diretrizes e medidas que podem ser tomadas para recuperar e sustentar a economia, além de outras sugestões de suporte para o setor de saúde, emprego, renda, habitação e empresas que serão afetadas durante a pandemia.
Na última segunda-feira (30), o governo brasileiro aprovou um auxílio emergencial de 3 meses no valor de R$ 600 para os trabalhadores que estão sem carteira assinada, autônomos e intermitentes. O auxílio que tem sido chamado de “corona voucher” tem previsão para sair no dia 16 de abril.
Já o IPEA fez uma projeção para tentar auxiliar o cenário de crise. O intuito é potencializar o uso do Programa Bolsa Família (PBF) e do Cadastro Único para melhorar a situação da população de baixa renda.
As medidas recomendadas pelo institutos são: fim da fila de espera do Bolsa Família, inclusão de 1,7 milhão de famílias que estão habilitadas a receber o auxílio, reajuste de pagamentos e das linhas e elegibilidade em aproximadamente 29% e criação de um benefício temporário para todas as famílias com renda familiar per capita inferior a meio salário mínimo (R$ 522,50).
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Em respeito à crítica situação causada pela pandemia da covid-19, o TecMundo não fará qualquer brincadeira de 1° de abril. Entendemos que, em face da onda de fake news que passa por toda a internet, especialmente agora, não é o momento para seguirmos com nossa tradicional pegadinha para a data. O corpo editorial do TecMundo acredita que a imprensa desempenha um papel crucial nessa crise, tendo o dever de manter seus leitores informados sem qualquer margem para dúvidas quanto ao seu conteúdo. Prometemos algo especial para o ano que vem.
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