A SpaceX pousar a Starship com sucesso é jornalisticamente um paradoxo; ao mesmo tempo que era inevitável, não deixa de ser notícia. Talvez o fato mais memorável esteja sendo ignorado pela imensa maioria das reportagens noticiando o feito: A velocidade com que a SpaceX saiu de uma caixa d’água para uma nave capaz de pousar em segurança.
Tecnicamente a Starship está em desenvolvimento desde 2012, mas era apenas um projeto terciário na SpaceX. Somente em 2017 eles conseguiram acumular especificações o suficiente para apresentar um projeto definido ao mundo. Em 2018 foi dada prioridade, com aumento de verba e equipe, projetando o que seria o Big Falcon Rocket.
O BFR usaria os motores Raptor, bem maiores mais poderosos e mais complicados que os Merlins do Falcon 9. Só o desenvolvimento do Raptor consumiu boa parte do tempo e dos recursos da SpaceX.
A SpaceX planejava construir o BFR e seus tanques de combustível usando fibra de carbono, mas o material se mostrou um inferno pra ser manipulado, e uma guinada completa foi feita: O BFR agora seria feito de metal, e nada exótico. O bem e velho aço inox, em uma liga própria.
Em Abril de 2019 a SpaceX apresentou o que talvez seja o foguete mais feio do Universo, o Starhopper. Ele é uma base de testes para os materiais de construção e os motores Raptor. Depois de alguns saltos, em Agosto do mesmo ano o Starhopper fez um vôo de 150 metros de altitude, provando que o Raptor era confiável e controlável.
Essa velocidade tem a ver com a metodologia de desenvolvimento da SpaceX. É algo impensável para a NASA, China, basicamente para todo mundo. Eles resolveram que todas as empresas e governos do planeta estão desenvolvendo foguetes errado, e o pior é que pelo visto estão certos.
Quer dizer, se você tem tempo e dinheiro infinitos, pode se dar ao luxo de aplicar todos os protocolos de testes, projeto, especificar cada parafuso e cada interação. Toda falha é uma pisada no freio enquanto o projeto inteiro é reavaliado. É assim que a Blue Origin está projetando o New Glenn e o New Sheppard, é assim que a ULA projetou todos os seus foguetes, e está projetando o Vulcan.
Já A SpaceX trabalha com a filosofia de resolução de problemas. É relativamente seguro dizer que Elon Musk nem ninguém na empresa tem a menor idéia de como serão as acomodações da Starship tripulada. O mecanismo de reabastecimento em órbita? Talvez esteja desenhado em algum guardanapo preso na parede de um engenheiro.
Ao invés de resolver todos os problemas, projetar e especificar todos os circuitos e sistemas, eles vão resolvendo um de cada vez, e bem rápido.
Foi assim com o Falcon 9. Eles queriam desde o começo reutilizar o foguete, mas primeiro construíram um capaz de colocar cargas em órbita. Feita essa parte, passaram a testar o resto. Primeiro com manobras orbitais, depois com pousos na água. A gente acompanhou, quando eles se esborrachavam no mar ou nas balsas.
Era divertido ver a mídia acusando a SpaceX de correr atrás de sonhos impossíveis, que nenhum foguete poderia pousar, era desperdício de dinheiro tentar isso.
Mais divertido ainda foi ver os problemas acontecendo -falta de combustível, falta de nitrogênio nos jatos de manobra, pernas com amortecimento insuficiente- e sendo resolvidos não um ano e 38 reuniões depois, mas no próximo lançamento.
Hoje, depois de 75 pousos bem-sucedidos, chega a ser considerado um fracasso quando um Falcon 9 não pousa, o que aliás é bem raro.
Com a Starship o desenvolvimento está sendo no mesmo modelo. Depois da caixa d’água abominável dos infernos que era o Starhopper, a SpaceX construiu outros protótipos para testar técnicas de soldagem e montagem, e para aprender na marra como fazer tanques capazes de resistir às pressões exigidas para um vôo tripulado.
Depois de várias explosões previstas bem legais, foi a vez da Starship SN5, um silo de cereais de metal com um contrapeso no alto, a desgraça destruiu o chão da plataforma de lançamento, mas subiu os 150 metros planejados, em 4 de Agosto de 2020.
Em 9 de Dezembro de 2020, foi a vez da SN8 fazer um teste de vôo de grande altitude. Desta vez com direito a bico e tudo, a Starship contava com flaps de manobra e um perfil de vôo ousado. Ela iria subir a 12,5Km, pairar, começar a descer, deitar na horizontal para reduzir a velocidade terminal e quando estivesse chegando, giraria e executaria um pouso vertical. Quase deu certo.
Lembre-se, esse bicho tem 50 metros de altura, é um prédio de 15 andares.
Quanto tempo levou pra SpaceX estudar a falha no pouso, descobrir que foi falta de pressão no tanque do nariz, projetar as correções e implementar?
Bem, em 2 de Fevereiro de 2021 a Starship SN9 estava decolando de Boca Chica. Na hora de religar os motores, um deles não funcionou direito e um único Raptor foi incapaz de desacelerar. O resultado foi espetacular.
Nessa altura a SpaceX já estava cumprindo sua meta: Produzir protótipos mais rápido do que conseguia explodi-los. Em 2 de Março foi a vez da SN10, um incrível alarme falso. Um pouco de Hélio, usado para pressurizar os tanques de combustível e oxidante foi ingerido pela tubulação, e compreensivelmente um dos Raptors engasgou, Hélio não é um dos gases mais inflamáveis, como todo mundo -vocês não, projetistas do Hindemburg- sabe.
Sem potência, o SN10 fez um pouso bem forte, rompeu tubulações e depois de oito minutos, cabum. Por outro lado foi a única Starship a decolar duas vezes 😉
A Starship SN11 voou 30 de Março, dois lançamentos em um mês. A decolagem foi perfeita, a manobra de giro idem, mas quando os motores foram religados um vazamento de metano provocou a perda da espaçonave, em uma gigantesca explosão.
No mesmo dia funcionários da SpaceX recolhiam os pedaços da nave, espalhados pela região, enquanto outros analisavam a telemetria e identificavam problemas. O próximo protótipo, a SN15 já estava em construção, incorporando centenas de modificações, derivadas de tudo que aprenderam com os lançamentos anteriores.
Pouco mais de um mês depois, em 5 de Maio de 2021, era a vez da SN15 ser lançada.
O clima não estava ajudando, a neblina deixava menos de 100m de visibilidade vertical, mas a Starship não precisa ver o local de pouso, ela tem toneladas de radares, lidares, gps e até Starlink.
O que não funcionou foi o streaming, por algum motivo o sinal estava horrível, ficamos vários minutos sem atualização, de vez em quando entrava um ou outro frame, então foi um belo susto ver a SN15 saindo das nuvens e iniciando uma manobra bem agressiva para se verticalizar e alinhar com o ponto de pouso.
Deu certo, com o detalhe menor que um vazamento de metano ou metano remanescente nas tubulações alimentaram labaredas por alguns minutos, mas mesmo assim a Starship não explodiu, o que é uma excelente forma de terminar um vôo.
Os Deuses da Exploração Espacial estavam realmente sorrindo pra SpaceX. Eles tiveram sorte, sorte mesmo. Entre outros momentos, a nave pousou bem na borda do pavimento de concreto. Talvez não acontecesse nada, mas pousar no chão de terra dificilmente seria agradável.
O pouso bem-sucedido veio na hora ideal, depois que a NASA mandou a SpaceX parar de trabalhar no programa de pouso lunar, contrato de US$2.89 bilhões que a empresa de Elon Musk ganhou, deixando para trás os concorrentes Dynetics e Blue Origin.
Os dois grupos, claro, entraram com um monte de recursos e acusações, fazendo com que a NASA parasse o projeto para ter que se defender. As acusações, dos grupos que nunca colocaram uma grama em órbita nem construíram nada que se assemelhe a um foguete de verdade acusam a SpaceX de… explodir protótipos.
Pois bem, agora para desgosto geral das inimigas, a SpaceX pousou uma Starship, na 5ª tentativa. Fora a SN15 a SpaceX está construindo da SN16 à SN20.
A expectativa agora é um vôo de testes do Super Heavy, o primeiro estágio da Starship, com 28 motores Raptor. O primeiro protótipo, BN1 foi feito para certificar as técnicas de construção e sondagem. Em 30 de Março de 2021 ele foi dado como encerrado.
O BN2 está sendo construído e provavelmente irá voar em breve. Musk diz que com sorte ele terá capacidade orbital, mas o BN3, que também já está sendo construído, será usado para o primeiro vôo orbital de uma Starship, em Julho de 2021.
A gente sempre imaginou aquelas fábricas como da ULA, com técnicos em impecáveis macacões brancos em salas limpas manuseando delicadamente complexas peças de metal, aí vem a SpaceX, em modo Full Tony Stark, construindo uma nave espacial em um terreiro, com um galpão de alumínio sem porta, e lançando literalmente da beira da estrada.
A SpaceX sem-querer criou toda uma economia de youtubbers nerds que passam 24 horas por dia filmando e acompanhando o desenvolvimento. A Starship hoje provavelmente é o projeto de engenharia mais monitorado e “aberto” do planeta. É a melhor forma de fazer engenharia? Não sei, mas é a mais divertida!
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