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Xenogears: o RPG que ousou falar sobre mechs e filosofia

Se ainda hoje vemos algumas pessoas classificarem os videogames como uma forma de entretenimento voltada para crianças, lá por meados da década de 90 este cenário era muito pior. Mesmo assim, este estigma não impediu que dois japoneses idealizassem um dos RPGs mais ambiciosos de todos um tempo, um jogo que buscaria inspiração em alguns dos maiores pensadores da história e abordaria temas bastante delicados. Esta é a história de Xenogears.

Xenogears

Crédito: Reprodução/JakeMurray/@DeviantArt

Após passar os primeiros anos de sua carreira trabalhando na Nihon Falcom, Tetsuya Takahashi mudou-se para a Square e lá participou da criação de jogos como Final Fantasy VI e Chrono Trigger. E foi durante a o desenvolvimento do sexto capítulo da principal franquia da empresa que ele se aproximou de Kaori “Soraya Saga” Tanaka, uma profissional que atuava como designer gráfico.

Tendo trabalhado sob a supervisão de Hironobu Sakaguchi e mesmo o admirando profundamente, Takahashi ambicionava criar seu próprio RPG e uma boa oportunidade parecia ter surgido quando Soraya lhe mostrou uma história que tinha escrito, onde o protagonista seria um jovem soldado com múltiplas personalidades. A dupla então decidiu apresentar o enredo ao alto escalão da desenvolvedora como sendo o de um Final Fantasy VII, mas a recepção não foi bem a que eles esperavam.

Interessados em formar uma equipe que ficaria responsável por criar uma continuação direta para o Chrono Trigger, a Square deu a Takahashi a liderança do projeto e enquanto ele se dedicava a o que lhe foi pedido, continuava incrementando o roteiro que tinha sido recusado. Alegando que o tom era sombrio demais e muito futurista para um jogo do gênero, os diretores seguiram recusando a proposta, até que um dia disseram a Takahashi que se ele queria criar algo, porque não optava por desenvolver uma nova franquia? Olhando em retrospecto, o receio dos executivos pode parecer exagerado, mas se considerarmos o contexto, eles tinham motivo para se preocupar.

Xenogears

Crédito: Reprodução/Resonant Arc/@Youtube

“Eu sou o alfa e o ômega, o início e o fim, o primeiro e o último”

Fruto de interesses em comum que Soraya Saga e Tetsuya Takahashi tinham, o desenvolvimento que teve início com o nome Project Noah buscaria inspiração em muitos lugares: de filmes como 2001: Uma Odisseia no Espaço, com um computador presente no jogo tendo recebido o nome SOL-9000; a livros como O Fim da Infância, de Arthur C. Clarke, com um personagem do jogo tendo sido batizado como Karellen (Krelian na versão norte-americana).

Aliás, embora muitos associem o enredo criado por eles ao do Neon Genesis Evangelion, ele na verdade tem muito do que encontramos no supracitado livro de Clarke. Em ambos temos a humanidade evoluindo a partir de uma inteligência vinda do espaço, onde crianças começam a desenvolver poderes telepáticos após contatos alienígenas, além de termos um personagem com o mesmo nome que intervêm para que os humanos evoluam mais rápido.

Semelhanças a parte, a obra ficaria marcada por abordar temas que seriam considerados espinhosos mesmo atualmente. De acordo com Soraya, aquela seria “basicamente uma história sobre de onde viemos, onde estamos e para onde iremos,” com os trabalhos de Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud e Carl Jung tendo influenciado fortemente a sua construção.

Ela mostraria a saga de Fei Fong Wong, um rapaz que para tentar salvar sua vila de uma invasão, decide entrar em um mech que estava abandonado nas proximidades. Durante a batalha, Fei acaba destruindo o lugar e matando acidentalmente quase todos que conhecia. Aqueles que sobraram então decidem exilar o rapaz, dando início a uma busca por redenção e principalmente, pelo entendimento do seu papel naquele mundo.

A situação se torna ainda pior devido ao fato do protagonista ter inconscientemente suprimido suas memórias após passar por traumas na infância, uma repressão que está diretamente relacionada ao conceito da sombra proposto por Jung na psicologia analítica. Sempre tentando nos colocar para pensar no que faríamos caso estivéssemos passando por aquelas situações, ainda hoje é raro vermos um jogo que busca ir tão fundo na psique dos seus personagens.

Contudo, Xenogears não se limita a tratar de crises existenciais, já que lida também com genocídio, sexualidade, suicídio e religião. Do gnosticismo ao judaísmo, abordando ainda simbolismos de religiões abraâmicas, o jogo aborda o livre arbítrio e questiona até como as instituições religiosas — aqui conhecida como Ethos — podem ser utilizadas como uma maneira das pessoas manipularem as outras.

Famosos por corromper refugiados e crianças que as procuram em busca de ajuda, esta religião se vale da força para causar medo, visando assim manter os seus servos sob controle.

Some a isso uma arma super poderosa chamada Deus que caiu no planeta há milênios e que poderá ser reativada a qualquer momento por líderes de uma sociedade secreta e podemos entender o quão complexa é aquela sociedade..

Deus? Onde existe tal ser? Você não enxerga que tal ser divino simplesmente nunca existiu desde o início? E você parece não perceber isso, mas você mesmo estava julgando pecadores tanto quanto nós!,” Verlaine, membro da igreja Ethos e assassino a serviço do Bispo Isaac Stone.

Pois esta manipulação acontece também por parte do obscuro grupo que vive isolado na cidade de Solaris e do governo de várias nações, que utilizam a propaganda e o terror psicológico para controlar o povo e fazer com que ele lute entre si. Isso por sua vez dá origem a diversos casos de racismo e xenofobia, com o conflito entre diversos personagens sendo oriundo das suas diferenças físicas, sociais ou ideológicas.

Por sinal, a crítica às ideologias é outro tema muito comum no enredo do Xenogears, com ele mostrando os perigos das pessoas as seguirem cegamente e como o comportamento de manada pode causar danos à população. Ele também ousa falar sobre a maneira como as crianças podem ser afetadas, tanto negativa quanto positivamente, pelas ações dos seus pais.

Xenogears

Crédito: Reprodução/Resonant Arc/@Youtube

“Temos a arte para não morrer da verdade”

E por falar de assuntos tão delicados, especialmente a parte religiosa, trazer o Xenogears para o ocidente foi uma tarefa quase impossível. Num primeiro momento, um representante da editora chegou a afirmar que ele não seria localizado, mas a dura missão acabou ficando sob os cuidados de Richard Honeywood, então funcionário da Square Electronic Arts e que classificou aquele como um dos trabalhos mais complicados da sua carreira. Além dos conceitos científicos e filosóficos, um dos principais motivos para tantos problemas teria sido a parte final, onde a ideia de “matar deus” precisou ser ajustada para não incomodar tanto o público cristão.

Um detalhe curioso sobre esta colaboração entre Honeywood e a equipe responsável pelo jogo foi a maneira como, mesmo sem intenção, o americano acabou interferindo no nome que Deus teria na versão japonesa do jogo. Originalmente o personagem deveria se chamar Yahweh, nome hebraico de Javé, o deus bíblico do antigo Reino de Israel.

Prevendo que aquilo poderia causar uma grande revolta no ocidente, o tradutor argumentou que o nome deveria ser alterado, mas durante a discussão acabou pronunciando yabeh-o, o que fez com que os japoneses caíssem na gargalhada. Isso aconteceu porque yabai é uma gíria japonesa para algo perigoso, o que fez com que o trocadilho servisse como uma luva e o último chefe passasse a ser chamado de Yabeh por lá.

Crédito: Reprodução/Resonant Arc/@Youtube

Já em relação a recepção quando o título finalmente chegou ao primeiro PlayStation, o que aconteceu em 1998, ela foi muito boa, tanto por parte do público quanto da crítica. Algumas pessoas ficaram incomodadas com a falta de inovações na parte da jogabilidade, com as batalhas adotando uma variação do Active Time Battle, mas o que realmente desagradou muita gente foi o ritmo acelerado presente no segundo disco da aventura.

Nele, a maior parte da história é contada apenas através de textos, com o jogador podendo explorar um ou outro calabouço e participar de batalhas apenas ocasionalmente. Aquilo indicava que o projeto que havia sido concluído em apenas dois anos precisava de mais tempo, além de mostrar que Soraya e Tetsuya Takahashi haviam produzido uma quantidade imensa de conteúdo relacionado ao universo do jogo.

Isso se deve ao fato de que inicialmente os criadores haviam imaginado a história como uma série, algo no melhor estilo Star Wars, com a intenção de que aquilo que foi contado no Xenogears seria dividido em duas partes, representando os episódios IV e V da saga. Além disso, a Square havia prometido que uma continuação aconteceria caso o jogo vendesse um milhão de cópias, mas como ele só atingiu 900 mil, o plano acabou sendo deixado de lado.

Por tudo isso, muito do que sabemos sobre sobre a política, ciência, religião e geografia daquele fantástico mundo veio do livro Xenogears Perfect Works. Contando com mais de 300 páginas, ele foi lançado oficialmente apenas no Japão, mas graças ao trabalho árduo de um fã, uma tradução para inglês foi disponibilizada gratuitamente em 2009.

Xenogears Perfect Works (Crédito: Reprodução/Fukkan)

“Aquilo a que você resiste, persiste”

Mas se uma continuação direta para o Xenogears nunca chegou a ser produzida, de certa forma Takahashi conseguiu dar continuidade ao seu sonho, mas fora da Square. Após o lançamento do jogo, ele fundou a Monolith Soft, estúdio que em parceria com a Namco daria início a uma nova era, criando o Xenosaga Episode I: Der Wille zur Macht — que curiosamente nos permitia salvar o progresso durante suas imensas cenas não-interativas.

Funcionando como um sucessor espiritual do RPG que havia conquistado tantos admiradores, a ideia era criar seis capítulos, mas devido às críticas relacionadas às mudanças, as baixas vendas e a pressão da editora, Takahashi viu-se obrigado a novamente diminuir o escopo da sua história, reduzindo-a para apenas mais outros dois títulos: o  Xenosaga Episode II: Jenseits von Gut und Böse e aquele que viria a se tornar o ápice da série, o Xenosaga Episode III: Also Sprach Zarathustra.

Apesar dos problemas enfrentados, tais jogos convenceram a editora de que valia a pena adquirir o estúdio, o que aconteceu em 2007. Porém, devido a algumas divergências entre as diretorias, no mesmo ano a Namco fechou um acordo para vender a Monolith Soft para a Nintendo, o que faria com que a partir de então eles passassem a se dedicar a uma nova etapa, que seria a série Xenoblade Chronicles.

No entanto, mesmo mantendo uma temática futurista e ainda flertando com simbolismos judaicos-cristãos, com seus enormes mechs roubando a cena, a franquia mais recente nunca adentrou terrenos tão instáveis quanto aqueles vistos no jogo imaginado há mais de duas décadas por Soraya Saga e Tetsuya Takahashi. Uma prova do quão a frente do seu tempo eles estavam com o Xenogears, não tendo medo de se soltarem das amarras características do gênero e de encarar uma indústria que muitas vezes demonstra uma grande aversão àquilo que é considerado diferente.


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